Cláudia Lamego
Em 2018, a professora Heloisa Teixeira (então Buarque de Hollanda) ofereceu um curso na Universidade Federal do Rio de Janeiro chamado “O cânone feminista”. Durante as aulas, muitas questões sobre o estado da arte dos debates feministas surgiram e um grande desafio se impôs: como reunir e disponibilizar textos para o programa?
Naquele ano, o Brasil e o mundo já estavam sob o impacto de campanhas como o #readwoman, que deu ensejo à criação do clube de leitura Leia Mulheres no país, e o #metoo, um movimento criado em 2006, mas que ganhou fôlego a partir de 2017, com as denúncias de atrizes estadunidenses sobre o assédio sexual que sofreram ao longo de anos na indústria de Hollywood. No início de 2018, Marielle Franco havia sido assassinada no Rio de Janeiro, em março, pleno mês das mulheres, que, em resposta, fizeram um grande movimento nacional durante a campanha eleitoral, em outubro, cunhado como #elenão.
Ao longo das aulas, Heloisa percebeu o enorme e crescente interesse de pesquisadoras, artistas e ativistas sobre mais uma onda feminista que, desta vez, retornava como um tsunami através de manifestações, debates e publicações e turbinada pelas redes sociais. “Foi para responder a essa demanda, especialmente a de jovens feministas, que resolvi reunir em livro um conjunto de textos que talvez respondesse a essas indagações contemporâneas. (...) A missão deste trabalho foi, portanto, a de facilitar o estudo das tendências teóricas e o avanço dos trabalhos acadêmicos e políticos em torno da questão de gênero.”, escreveu na introdução do primeiro livro da Coleção Pensamento Feminista, que ganhou os seus dois primeiros volumes em 2019.
Em Conceitos Fundamentais, Heloisa reuniu artigos que, segundo ela, ilustram a segunda onda do pensamento feminista, a partir da formação e entrada nas universidades e centros de pesquisas dos campos de saber idenficados como womens’s studies ou gender studies. Em Pensamento Feminista Brasileiro, a crítica cultural e pesquisadora faz um importante e referencial inventário de textos escritos por autoras brasileiras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Heleieith Saffioti, Margareth Rago, entre outras pioneiras.
No texto de apresentação deste segundo volume, ela observa, “com tristeza”, que, naquela época, os estudos de gênero nas universidades brasileiras eram fortemente marcados por bibliografias e referências anglo-americanas. “Apenas nos últimos anos, provavelmente em razão da emergência dos debates feministas interseccionais, começamos a reconhecer a importância de pensadoras latino-americanas e mestiças (...) e latinas, ee trazer agora a perspectiva decolonial com suas sérias ressalvas às teorias de caráter eurocêntrico”.
Helô, como farol que sempre foi para a cultura, praticamente antecipou a fala de Angela Davis, uma das autoras mais importantes dos Estados Unidos, que, no ano da publicação dos primeiros volumes, 2019, esteve no Brasil e pediu às mulheres daqui que olhassem para a produção de Lélia Gonzalez. “Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês jamais aprenderão comigo”, disse ela. Na coletânea da Bazar do Tempo, Lélia teve três textos referenciais publicados: “A categoria político-cultural da Amefricanidade” (Conceitos fundamentais); “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (Pensamento feminista brasileiro); e, por fim, no texto que abre o terceiro volume, Perspectivas decoloniais: “Por um feminismo afro-latino-americano”.
Além deste último, a coleção ainda trouxe mais um volume essencial para a evolução dos debates: Sexualidades do Sul Global, publicado em 2020.
Com esses livros, Heloisa Buarque e a editora Ana Cecilia Martins inauguraram o perfil feminista da Bazar do Tempo e começaram a fermentar a ideia que ganharia corpo dali a um ano: em 2021, foi criado na casa o Clube F., um clube de assinatura de livros escritos por mulheres e feito por uma equipe totalmente feminina.
Neste mês de março, em que completam-se 50 anos da criação do Ano Internacional da Mulher, pela ONU, o Clube F. faz aniversário de 4 anos. Com o lançamento de Feminismo ou morte, da francesa Françoise D’Eaubonne, serão 55 livros publicados desde então. O clube foi inaugurado com o seminal Um quarto só seu, de Virginia Woolf, e já trouxe ao Brasil obras de ficção e não-ficção indispensáveis a uma biblioteca de referência para o feminismo.
Heloisa Teixeira marca ponto no Clube F. com importantes obras: ela foi a grande artífice do livro Feminismo no Brasil, de Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy, que percorrem a trajetória de lutas de pioneiras e suas principais conquistas, a partir do depoimento de 50 mulheres; autora de Feminista, eu?, um ensaio que põe sob a perspectiva feminista o papel de mulheres na cultura brasileira, da literatura, música e cinema; e também de Rebeldes e marginais, mais um inventário de suas pesquisas e atuação nos movimentos de resistência à ditadura militar de 1964.
Neste ano do quarto aniversário, o Clube F. publicou também a terceira obra de uma das mais importantes pensadoras do gênero e da violência patriarcal e colonial contra as mulheres: Rita Segato. Com As estruturas elementares da violência, a editora dá continuidade ao seu projeto de publicar as obras completas da autora, argentina com atuação relevante no país, principalmente na criação das cotas raciais. Para as assinantes do Clube, Rita dará uma aula exclusiva sobre a obra no dia 10 de março.
Além de cursos gratuitos, aulas, debates, clubes de leitura e lançamentos presenciais e online, o Clube F. também publica anualmente a sua Agenda Feminista, para a qual são pesquisadas datas importantes sobre as conquistas feministas e a biografia de mulheres que fizeram história em várias áreas de atuação, como as ciências, a literatura, a política, os movimentos de defesas dos direitos humanos, entre outras.
É por meio dessa pesquisa, e dos livros sugeridos e publicados até aqui, que a cada ano observamos que é inesgotável o universo de feitos e histórias protagonizadas por mulheres, no Brasil e no mundo. Quanto mais publicamos, descobrimos novas obras e mergulhamos na história, renovamos uma das mais importantes missões de todas as mulheres, ao nosso ver: lançar luz sobre vidas que, durante séculos, foram esquecidas e descartadas.
Dias, meses, anos e séculos mulheres virão!