No Carnaval, não é não?

Beatriz Accioly Lins

No Brasil, em fevereiro, tem Carnaval. Neste ano, no caso, ele acontece em março, mas vocês entenderam… O Carnaval é uma das expressões culturais mais representativas da identidade nacional brasileira, profundamente enraizado na história e na cultura do nosso país, transitando energicamente por entre nossas diferenças e desigualdades.  Em outras palavras, o Carnaval habilita e potencializa o que temos de melhor e pior.  Não seria diferente em relação à violência contra as mulheres.

E durante o Carnaval, sobretudo nos últimos anos, não é raro nos depararmos com iniciativas, campanhas e palavras de ordem bem-intencionadas a respeito do papel do consentimento sexual para o estabelecimento de uma folia “saudável e segura”. Em especial, para as mulheres. Estas são intervenções louváveis, pois sinalizam socialmente – em um momento de grande ebulição e atenção popular ­ – que nossas sensibilidades morais estão em constante mudança, e que nenhum comportamento desrespeitoso ou invasivo deve ser tolerável ou justificado com base na ideia de que o Carnaval é um período de subversão ou ausência de regras.

O quanto entendemos, contudo, de “sim é sim, não é não”, dentro ou fora do Carnaval? Slogans e simplificações têm uma função pedagógica para a popularização de ideias, mas podem esconder complexidades. Este é o caso das conversas sobre consentimento sexual. Embora seja um termo que esteja na moda, ainda patinamos, enquanto sociedade, no entendimento de que consentimento, mais do que uma simples autorização, é uma interação social complicada, cheia de nuances e ambivalências.

Por exemplo, um “sim” obtido sob ameaça, medo ou profunda desigualdade de poder não pode ser considerado legítimo, uma vez que a possibilidade do “não” encerra riscos importantes. Se o “não” não é possível, o “sim” tem real valor?

Há uma série de motivos para pessoas concordarem ou cederem à contragosto diante de uma situação com a qual não estão confortáveis. O Carnaval é uma delas. Entendemos realmente que, mesmo no Carnaval, podemos e devemos negar interações que não desejamos?  Ou ensinamos que, no Carnaval, a folia não deve limitar a vontade alheia?

Não é fácil desmantelar aprendizados culturais enraizados que associam a festividade à permissividade sexual, ainda mais com os corpos de meninas e mulheres. Slogans de “não é não” também perpetuam estereótipos sociais que colaboram com uma retórica perigosa: a de

 que homens sempre vão cruzar limites e que caberia às mulheres salvaguardar o próprio bem-estar.

O consentimento é o início de uma série de conv ersas e mudanças profundas e desconfortáveis que precisamos conduzir. Sua presença não é simples de estabelecer nem de identificar. No mais, o consentimento sexual não é o suficiente para que haja prazer, desejo e liberdade, três atributos constitutivos do Carnaval e que, por enquanto, têm sido possibilidades bastante desiguais para homens e mulheres.

Um abre-las para novas conversas...

Leia Precisamos falar de consentimento – Uma conversa descomplicada sobre violência sexual além do sim e não

Beatriz Acioly Lins é antropóloga e autora do livro Precisamos falar de consentimento – Uma conversa descomplicada sobre violência sexual além do sim e não, com Arielle Scarpati e Silvia Chakian. Concluiu mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP). Foi pesquisadora convidada no Departamento de Antropologia da University College London (UCL), em Londres, Inglaterra. Atua como gestora de projetos de impacto social e acesso a direitos fundamentais, trabalhando na promoção, avaliação e monitoramento de políticas públicas. É associada ao Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS–USP). Publicou, entre outros livros, A lei nas entrelinhas: a lei Maria da Penha e o trabalho policial (2018) e Caiu na net: nudes e exposição de mulheres na internet (2021).

 

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