Minha experiência como escritora traduzida

Cristina Peri Rossi
Tradução de Anita Rivera Guerra

“Sem dúvidas, a cultura deve à tradução sua sobrevivência.”

Cristina Peri Rossi
A escritora uruguaia Cristina Peri Rossi foi traduzida para diversas línguas: francês, inglês, alemão, italiano, português, checo, holandês, polonês, sueco e ídiche, entre outras. No dia 13 de novembro de 2001, em sua conferência inaugural para o Seminari Permanent do Departament de Traducció y Comunicació [Seminário Permanente do Departamento de Tradução e Comunicação], compartilhou reflexões sobre sua experiência como escritora traduzida, tendo sido ela mesma tradutora da literatura de, por exemplo, Clarice Lispector, Monique Wittig e Baudelaire. Esse texto reúne as reflexões que Cristina Peri Rossi expôs em sua conferência em Castellón e ao mesmo tempo é baseado nas que Cristina Peri Rossi expôs em “A Translator in Search of an Author”, em Balderston, Daniel e Marcy E. Schwartz (eds.) (2002): Voice-Overs. Translation and Latin American Literature, Nova York, State University of New York Press, SUNY Series in Latin American and Iberian Thought and Culture, pp. 58-60.

Normalmente eu não escolho meus tradutores, e sim eles me escolhem (são em geral mulheres, mulheres apaixonadas, seduzidas por um texto). Acredito que a escrita é um processo de sedução, e que a tradução é um processo de amor. Eu mesma, inclusive, ao traduzir um livro (Laços de família, de Clarice Lispector, ou Le traîte, de André Gorz), estive apaixonada pelo texto, seduzida por ele. (Em outras ocasiões, tive que traduzir um livro por motivos puramente econômicos, mas essa é outra história.)

Esse tradutor, ou tradutora, apaixonado por um texto, crê que a voz do autor é sua própria voz, que as palavras escritas são aquelas que ele ou ela gostaria de ter escrito; em outras palavras, ele ou ela se identifica com o autor e ocasionalmente com os personagens. A tradução, essa apropriação do texto do outro, conduz de maneira inevitável a uma simbiose na qual a fidelidade, a traição, a propriedade e a apropriação são mecanismos emocionais e apaixonados.

O tradutor persegue, como no amor, um objeto inalcançável: não se pode possuir o texto de outro, do mesmo modo em que este não pode ser reescrito em outro idioma sem ser modificado. Ao transladar-se a outra língua, o texto traduzido sempre se converte em algo diferente, uma transição que preocupa o tradutor tanto quanto o autor. Ambos se sentirão sempre parcialmente frustrados. Como no amor, a fidelidade absoluta é impossível, como o é a identificação total (ninguém nos ama como nós desejamos ser amados, e nunca conseguimos sentir o mesmo que a outra pessoa).

Há tradutores que perseguem de maneira obsessiva a fidelidade textual: tratam de ignorar que a outra linguagem é em si mesma uma infidelidade a respeito do original. Outros, no entanto, estimulados pela simbiose emocional, tentam reescrever o texto na outra língua, como se a voz do autor fosse literalmente a sua própria, como se a consubstanciação com o autor transformasse as duas línguas em uma só.

Eu quase sempre tive uma relação muito próxima, íntima, com meus tradutores, uma relação que não hesito em denominar erótica ou amorosa, pois a tradução é uma manobra da linguagem, e a linguagem procura encontrar uma forma em algo inominável, o desejo.

Ninguém conhece melhor que o tradutor o texto que há de ser traduzido, pois sua tarefa consiste em submergir-se no imaginário do autor ou da autora, em suas fantasias e desejos. Por esse motivo a relação se converte em uma espécie de psicanálise. É, até certo ponto, vampírica, fagocitadora, como o amor, e descarada, como a pornografia.

Sigo fascinada pelas relações que se estabelecem entre os autores e os tradutores, as autoras e as tradutoras, sobre as quais acaba sendo tão difícil escrever, como, de fato, autênticas sessões psicanalíticas.

Eu não escolho meus tradutores, deixo que eles me escolham.

Após publicar a primeira edição do meu romance Solitario de amor, recebi uma carta muito curiosa. Vinha da França e estava assinada por um homem jovem chamado Denis Tagu, engenheiro florestal enviado para um projeto de reflorestamento no campo catalão. A carta me contava que sabia um pouco de espanhol e que gostava de ler nesse idioma. Um amigo livreiro lhe tinha recomendado meu livro, e após lê-lo, ele quis ler outros. O que acabava de ler era Solitario de amor, e me contou que o tinha achado sedutor e fascinante. Regressou à França, à cidade em que vivia a mulher por quem estava apaixonado, com um exemplar do livro para ela. Mas havia um pequeno problema: ela não sabia nada de espanhol. Assim, durante as longas e apaixonadas noites seguintes, enquanto faziam amor, ele ia traduzindo em voz alta as páginas do meu livro. Dessa maneira, meu texto escrito se mesclou com o texto oral, ainda não escrito, do seu amor. Ele acabou traduzindo todo o romance.

Li essa carta fascinada pela série de espelhos entrelaçados: no meu romance, um homem apaixonado trata de seduzir todas as noites uma mulher que ele ama, do mesmo modo que na vida real um jovem francês, o engenheiro florestal, lê fragmentos do livro para a mulher que ama para seduzi-la. Meu remetente espontâneo provavelmente não reconheceu o fragmento da Divina Comédia de Dante, quando Francesca, condenada ao Inferno por ser libidinosa, narra como foi seduzida por Paolo enquanto ambos liam sobre as façanhas amorosas do cavaleiro Lancelote e da princesa Guinevere. “[N]esse dia não o lemos mais adiante”[1], diz Francesca, aludindo à sedução pecaminosa.

Eu respondi, naturalmente, à carta do tradutor espontâneo. Imaginei que uma noite ele leria a carta à sua amada, como antes lhe havia lido meu livro, e que então e para sempre depois disso seríamos três na cama: eles dois e o romance Solitario de amor.

Denis Tagu me enviou sua tradução espontânea do meu romance. A partir do instante em que comecei a ler, me dei conta de que ele havia me traduzido para o francês exatamente como eu teria feito. Desse modo, a relação especular se multiplicou ainda mais: eu tinha escrito o roteiro amoroso que ele queria pronunciar à sua amante, mas ele conseguiu traduzi-lo para o francês como eu ficaria encantada em fazer. Algum tempo depois, a editora francesa Phébus publicou a tradução de Denis Tagu, e eu ainda a considero uma versão bela e satisfatória.

Conheci casualmente Diana Decker, a tradutora da minha poesia para o inglês, enquanto dava uma conferência em uma universidade norte-americana. Naquela época, ela não era tradutora, mas professora de espanhol em Washington. Ela estava totalmente cativada pelo meu livro de poemas Babel bárbara, e eu reconheci em seu ardor o componente libidinoso que converte uma tradução difícil em um ato de amor.

Minha deficiência com o inglês não foi um obstáculo nos nossos encontros apaixonados, quando discutíamos acaloradamente se a melhor maneira de traduzir “advenediza” era “outsider”. Quando Diana Decker traduz um poema meu, e traduziu muitos, peço a ela que o leia em voz alta em inglês. Sua pronúncia em inglês é tão impecável que mesmo em uma língua em que sou basicamente surda eu o admiro. E quando um som de sua tradução não me agrada ou uma palavra me parece áspera demais ou suave demais, a interrompo e peço que procure alternativas. Embora seja impossível imitar a sonoridade das línguas latinas em inglês, entre nós duas conseguimos um efeito sonoro equivalente na tradução.

Com frequência, Diana Decker grava nossas conversas (ou versões, ou disquisições), e nessa série de fitas se pode escutar a gente falar... sobre palavras, o tema de conversa que mais me interessa no mundo.

Cabe levar em conta que a linguagem nunca é inocente, sempre contém milhares de metassignificados. Adoro falar sobre palavras. E com quem melhor que com uma tradutora que as saboreou, poliu, ponderou, explorou, bebeu, comprimiu, lambeu e apalpou como ao peito da mulher amada?


Cristina Peri Rossi (1941) é escritora, tradutora e ativista política uruguaia, autora de uma vasta obra que inclui romances, contos, ensaios e poesia. Em 1972 exilou-se na Espanha, onde mora ainda hoje, e durante a ditadura militar que governou o Uruguai, de 1973 a 1985, teve sua obra proibida no país. Seus livros já foram traduzidos para mais de vinte idiomas. Em 2021, recebeu o Prêmio Miguel de Cervantes, a maior honraria das letras espanholas. A insubmissa, obra lançada em 2020, é seu romance mais recente. Foi publicado pela Bazar do Tempo em 2025 com tradução de Anita Rivera Guerra.

Anita Rivera Guerra é pesquisadora e tradutora. Atualmente, finaliza o doutorado no Departamento de Línguas e Literaturas Românicas na Universidade Harvard, Estados Unidos, onde também realizou mestrado. Pesquisa a obra de Cristina Peri Rossi desde 2016.

1 comentário

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Marisa Calage

Conheci Anita Guerra com 12 anos, uma graça, óculos com armação escura e pesada, meio carrancuda mas quando sorria tudo se iluminava a suavidade, inteligênci, graça de Anita se escancarava e eu me apaixonei imediatamente. Diferente do jovens de hoje, que triste, grudados no celular Anita escondia o livro embaixo da mesa e lia , lia, lia.
Maravilhosa.

Somos gêmeas, ambas nascidas em 11.11. eu, algumas (muitas) décadas antes. E foi ela que na sua dissertação de mestrado me revelou duas gandes poetas Cristina Peri Rossi, uruguaia, exilada na Espanha, Barcelona e Alejandra Pizarnik , argentina. Foi também Anita a tradutora de AInsubmissa, romance de formação de Peri Rossi.

Anita, você continua me devendo a dedicatória, quando será?
Um beijo,
Marisa

September 27, 2025 at 17:24pm

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