Os tempos mudaram: agora são as mulheres empoderadas que apedrejam putas
Bárbara Krauss
Poucos minutos depois da vitória de Anora eu comecei a ver muita putafobia na internet, não quis brigar, fiquei na minha e fui dormir.
No dia seguinte, voltei a ver muitas críticas de que se tratava de um filme raso. Com quem eu considero, converso; com quem não deixo quieto. Entendo também que tem mais a com um sentimento de perda do que qualquer outra coisa.
Vejo um vídeo de PH Santos sobre a importância de um filme independente ter ganhado o Oscar e o primeiro comentário que aparece é algo como “você não acha problemático vencer um filme que hiperssexualiza a mulher?”
Coitado. Acha que as mulheres recatadas não são também fruto de opressão patriarcal. Que a “mulher empoderada” sem consciência de classe e gênero não é mero produto capitalista.
Aí me deparo com o texto de Milly Lacombe para o UOL intitulado “Todo o deboche contido na celebração a Anora”. Me pergunto se a má compreensão do filme é só falta de boa vontade ou está relacionada a putofobia.
No texto, ela diz que o filme é sobre uma prostituta buscando um príncipe encantando e descobrindo depois que o homem certo era um brutamontes.
A única coisa certa nesse paragrafo é a profissão da protagonista, mas elas preferem ser chamadas de trabalhadoras do sexo.
Anora é um filme sobre a falência das ilusões do capitalismo e, com elas, ideais de classe e gênero. A protagonista não perde um príncipe, ela descobre que a ascensão social via uma relação romântica pertence aos filmes e não à realidade. Quando ela encontra um “bom homem” ele não é um brutamontes, é um sujeito de classe baixa, que é obrigado a fazer trabalho braçal, mas que não esconde que vive e gosta de sua avó.
Na sequência, Lacombe reclama da romantização do precário e de o filme não mostrar os problemas do trabalho sexual. Estamos falando de Uma linda mulher?
Não estamos. Qualquer leitura rápida de Silvia Federici ou de Monique Prada nos alerta sobre como tratar as trabalhadoras sexuais exclusivamente pelo viés da marginalidade serve aos interesses do patriarcado de criar a ameaça da mulher vagabunda, assim a gente pode escolher ser uma dona de casa não remunerada por medo.
"A divisão das mulheres entre boas e más beneficia a estabilidade do sistema. O estigma da prostituição nada tem a ver com o que as trabalhadoras sexuais são ou fazem. O modelo de esposa e mãe abnegada exige muito sacrifício. Ainda que se diga que a mulher é a rainha do lar, sabemos que não é, que é uma pessoa a serviço de todo mundo. É um modelo tão pouco atraente e com tão pouca recompensa e reconhecimento que a única forma de conseguir que as mulheres se adéquem a ele é assegurar a elas que a outra possibilidade é pior."
Dolores Juliano, antropóloga argentina
A isso se segue uma sequência de fatos da premiação com comentários brevíssimos e genéricos sobre política internacional. Parece que o texto foi escrito na pressa de ir logo pro bloco.
Considero a interpretação de Mikey, Demi Moore e Fernanda Torres muito boas. Torci e acredito que Fernanda deveria ter ganhado, mas entendo também os motivos de Mikey ter levado e não Demi.
Pra começar, Mikey não divide o protagonismo como Demi e tem 100% de tempo de tela. Depois, a escolha de Sean Baker de fazer um filme com três atos de gêneros cinematográficos diferentes exige de Mikey uma flexibilidade que os outros dois roteiros não o fazem. Esse é um caminho de compreensão.
Existem prêmios roubados, existem prêmios perdidos. Quando você escreve pra um grande veículo, eu acho importante saber a diferença entre um e outro. E é preciso lembrar: nós sequer perdemos!
O FUTURO REPETINDO O PASSADO
Depois de postar esse texto nos stories do instagram, boas conversas rolaram. Minha amiga e escritora Ana Barros lembrou que Demi Moore foi colocada de lado pela indústria após seu papel de Striptease.
Eu nunca vi o filme e sinceramente nem a escrita desse texto me animou muito a fazer isso, mas não é preciso assistir pra saber o motivo pelo qual a atriz foi vista como uma profissional “não séria o suficiente” para outros papéis.
Dali em diante, Demi pairou como uma subcelebridade que ganhava as manchetes apenas quando namorava um bonitão mais novo como Ashton Kutcher.
O que será que Demi diria se disséssemos: vamos ali jogar pedra nessa novinha que interpretou uma prostituta?
A resposta eu deixo com vocês.
A VITÓRIA DE MIKEY PROVA QUE SUBSTÂNCIA ESTAVA CERTA
Alguém disse que era preciso provar que a indústria cinematográfica descarta mulheres quando envelhecem? Porque eu sequer vi isso ser colocado pra debate.
Esse é um dos argumentos mais moralistas (e menos criativos) que eu vi sendo usado para atacar Mikey Madison.
É a atualização do “ela foi promovida porque dá pro chefe”. Vocês enxergam?
É a retirada dos méritos de uma mulher aliada mais uma vez à imposição moral de ser domesticada, de se comportar bem.
É a putafobia que foi normalizada quando mulheres começaram a trabalhar em escritórios e era preciso explicar o porquê de elas estarem sendo promovidas em detrimento de homens que estavam lá há muito mais tempo. Não poderia ser mérito delas, claro.
DIA INTERNACIONAL DOS DIREITOS DOS TRABALHADORES DO SEXO
Esse dia é comemorado um dia depois de o prêmio ter sido dado, 3 de março.
Passamos esse dia pedindo pra um francês aproveitador falar sobre a comunidade trans que ele porcamente retratou em Emilia Perez como se ele tivesse algo a dizer. E ficou claro que ele não tinha.
Enquanto isso, Mikey Madison e Sean Baker subiram ao palco da maior premiação do cinema mundial e disseram “eu agradeço às trabalhadoras sexuais, estou com vocês”. E ninguém falou sobre isso.

Eu sei que defender a organização de trabalhadoras sexuais ou a legalização da profissão é um assunto espinhoso mesmo na esquerda e a gente vem perdendo a capacidade de estar à frente realmente das pautas enquanto campo político.
Mas queria fazer um pedido: vamos dar atenção a isso. A seguir deixo sugestões de leitura para falarmos do assunto com menos moralismo e mais conhecimento. Indico, inclusive, três livros escritos por mulheres da indústria do sexo.
Putafeminista, de Monique Prada (Veneta)
O livro apresenta uma perspectiva nacional do trabalho sexual no Brasil, sua história e legislação, assim como comenta o contexto social que recebe esse tipo de trabalhadora na sociedade. Gosto especialmente de como ela mostra a importância dessa classe na construção de políticas de conscientização contra infecções sexualmente transmissíveis junto ao Ministério da Saúde.
Teoria King Kong, de Virginie Despentes (N-1 Edições)
A autora francesa parte de sua experiência sexual e da atuação na indústria pornô para debater certas certezas mobilizadas pela sociedade e até por feministas e que são puro suco de moralismo.
Dando uma de puta: a luta de classe das profissionais do sexo, de Melissa Gira Grant (Autonomia Literária)
Esse é o livro mais completo em termos de teoria geral, ele perpassa as diferentes legislações sobre o trabalho sexual no mundo e debate a importância de modelos acolhedores para que as trabalhadoras do sexo não sejam responsabilizadas pelas violências a que são submetidas.
Bárbara Krauss (ela/dela) é jornalista pela UMESP e, desde 2017, responsável pelo B de Barbárie, espaço de divulgação cultural e narrativas políticas, nas plataformas do Instagram, Youtube e Substack.