Alexandra Lucas Coelho
Não sei se estará em casa. A salvo onde seja, espero. Vi-a quando saiu da prisão a meio da noite, com o cabelo todo branco, branca como quem vem da morte, e foi levada, atordoada, por entre aquele povo que não cabia em si, cada mão na mão de alguém. Imagino a avalanche depois. Ou antes, mal imagino. A minha mensagem ficou por entregar (mandei outra para o número do seu marido, terá chegado?). A última notícia que acho online é do dia seguinte à libertação, quando dezenas de pessoas a visitaram. Já tinha cor na cara, no cabelo, e sobre a véspera disse: “Era a primeira vez que eu falava a seres humanos ao fim de seis meses de isolamento na minha cela.” Aos 61 anos, diabética, e presa não pela primeira, segunda, terceira ou quarta vez, mas pela quinta. Somando tudo, dez anos prisioneira política de Israel. Durante os quais, por exemplo, ensinou inglês a outras, para quando saíssem livres. E como isso parece remoto hoje, 500 dias após o 7 de Outubro. Não a fé de que sairão livres, que continua a mesma, vi na última notícia, mas ensinar inglês na prisão. Porque — sei agora —, os seus seis meses de isolamento foram numa cela sem janelas de 2m por 1,5m com uma cama de cimento, um colchão fino, sanita sem água na maior parte do tempo. Para não ter de a usar evitou beber líquidos. Um cheiro insuportável, nenhuma ventilação, calor extremo no Verão. Mas o pior de tudo era a falta de ar. Então, ficava no chão da cela, respirando pela fresta debaixo da porta.
Conto isto a quem me ler antes, não a si, claro. E se alguém acabou de pensar nos túneis sem ar de Gaza, eles existem porque milhões de pessoas foram trancadas atrás de um muro, no nosso tempo de vida. Não pelo Hamas, que não é um Estado, mas pelo Estado a que a Europa beija a mão como mãe e como filha. De resto, Khalida está a milhas do Hamas, é uma esquerdista da Cisjordânia, uma feminista levada em ombros por homens. A primeira vez que Israel a prendeu foi num 8 de Março (em 1989). Mas eu nem fazia ideia disso quando pensei escrever-lhe neste 8 de Março. O convite era para um postal, vinha de Grândola, a vila da revolução portuguesa que nós cantamos à capela, com pedra partida debaixo dos pés e um arrepio sempre. Achei que iam gostar de se conhecer. E que eu gostaria de lhe levar o correio. Encontrá-la enfim.
Porque naquele 12 de Dezembro de 2023, que teria sido a nossa primeira hipótese, viajei de Ramallah para Nabi Saleh, a aldeia dos Tamimi. Ou das Tamimi: Manal, Janna, Ahed (oculta algures, acabada de sair da prisão pós-7 de Outubro, já adulta e ainda o ícone que aos 11 anos ameaçava soldados com o seu pequeno punho). E depois subi para o Campo de Refugiados de Jenin, desci para o Natal mais triste em Belém, pensando que a poderia encontrar a seguir. Que haveria tempo. Mas às 5h da manhã de 26 de Dezembro os soldados forçaram a porta da sua casa de Ramallah, subiram ao quarto onde dormia com o seu marido, tantas vezes preso, também. A ele bateram-lhe com a coronha das armas, a si mandaram que se vestisse, à saída amarraram-lhe as mãos, vendaram-na. Seis meses numa prisão do Norte de Israel, sem culpa formada, mais seis meses noutra, a do isolamento, a sul de Telavive. Até que na noite de cessar-fogo, já muito depois do horário nobre das televisões, a vi libertada, quase irreconhecível. Mesmo para uma veterana, aquelas prisões, agora, são um buraco negro. Corpos amarrados ou imobilizados até à amputação de membros, gás e espancamentos dentro das celas, fracturas, queimaduras, penetração com objectos, infecções com sarna, caras a caminho de caveiras. Dezenas de prisioneiros que acabaram por morrer desde 7 de Outubro. E as “detenções administrativas” destes 500 dias incluem mulheres muito novas e muito velhas, grávidas ou a amamentar, enquanto outras davam à luz em Gaza sem anestesia, viam os filhos morrer nas mãos ou não os puderam enterrar. Como sei que lhe aconteceu a si (depois de já ter perdido pai e mãe enquanto estava presa) não a terem deixado sair para enterrar a sua filha mais nova, morta subitamente do coração em 2021. E nesta última prisão, de novo, quando o sobrinho que criou como um filho morreu do coração, também.


Frida Khalo tem várias pinturas com o coração aberto. Mas a que tenho no frigorifico é a das melancias em que ela escreveu Viva la Vida! Já celebrava a Palestina sem saber. A segurá-la está o íman que há anos eu trouxe da prisão de Nelson Mandela. Um dos meus medos mais antigos é o de quebrar se fosse presa, de ser uma cobarde miserável. Somos apenas cobardes perto de vocês, mas a fasquia está aí, onde a vida se decide. Não esqueço que respirou junto ao chão porque era onde passava o ar. E leio que os seus gatos são ruivos, Assal e Ajwa. Mel e Tâmara Madura? Espero conhecê-los quando o correio chegar.
Alexandra Lucas Coelho é escritora e jornalista, autora dos livros Deus-dará, Cinco voltas na Bahia e um beijo para Caetano Veloso e O meu amante de domingo. O texto faz parte do novo livro, Gaza está em toda parte, que lançará em junho em Portugal e no Brasil.



Khalida é Khalida Jarrar, nascida em 1963, numa família de Nablus (Cisjordânia), ex-deputada da Assembleia Palestiniana, investigadora na Universidade de Bir Zeit, directora da ONG Addameer, que defende os direitos dos prisioneiros. Quando eu estava a ultimar este livro, a Câmara de Grândola (Alentejo) convidou-me a escrever o texto de um postal para o 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, que seria distribuído pelos habitantes, com uma ilustração de João Fazenda. Este foi o texto que lhes enviei, escrito a 17-18 de Fevereiro de 2025, aqui publicado com o acordo deles, depois de ter sido distribuído pelas 7000 caixas de correio de Grândola.