“Richard Cœur De Lion”, de Louis Aragon, e um canto de esperança em meio ao genocídio do povo palestino

Anna Magdalena Machado Bracher

Texto originalmente escrito em julho de 2024

O contexto da escrita de Les Yeux d’Elsa y “Richard Cœur De Lion”

O poeta francês Louis Aragon (1897-1982) publicou o livro de poemas Les Yeux d’Elsa em 1942, no período da ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial. Nesta obra, enquanto descreve seu amor pela esposa, a escritora Elsa Triolet, musa poética a exemplo de Laura o Beatrice, Aragon também trata da situação da França invadida pelo exército alemão, destroçada e dividida pela linha de demarcação. O estilo poético do autor rende tributo aos trovadores provençais, em especial a Arnaud Daniel (1150-1210), como explica Aragon no artigo “La leçon de Ribérac ou l’Europe française”, publicado em 1941 na revista Fontaine, um ano antes da publicação de Les Yeux d’Elsa:

…ce qui faisait que je ne pouvais me détacher l’esprit de Maître Arnaud, c’était que, dans un temps où mon pays était divisé, et par la langue, et dans sa terre, où il y avait un roi de Paris, et un roi d’Angleterre qui tenait la moitié de la France, et dans le Nord un comte de Flandre, dans l’est un comte de Champagne, dans un temps où mon pays était encore épuisé par les folles saignées des Croisades (…) il se soit développé une poésie qui porta plus loin et plus haut que les étendards de ces princes la grandeur française, et fit naître dans l’Italie de Virgile et d’Ovide une gloire, une grandeur nouvelles, qui se réclament de la France. J’étais saisi de cette idée, quand tout paraissait perdu, elle venait me rendre le courage et la confiance en nos destinées, et c’est de quoi je resterai à jamais reconnaissant à Maître Arnaud Daniel (pp. 121-122).

Aragon deixa claro que ele não se sente tributário de Arnaud Daniel apenas nos aspectos poéticos formais, mas também pelo fato de que, em um contexto histórico de guerras e de uma França dividida, Maître Arnaud havia podido construir as bases da que viria a ser a grandeza da poesia francesa, e que chegaria a influenciar até mesmo a poetas como Dante o Petrarca. Aragon entendia que se por um lado sua poesia deveria ser herdeira dessa poesia provençal na forma, por outro lado era sua tarefa e dever usar sua obra como instrumento de resistência, sua poesia como arma contra a ocupação alemã. Efetivamente, muitos dos poemas que compõem Les Yeux d’Elsa podem ser considerados poesia de contrabando, levando ao povo francês e à Resistência mensagens de ânimo que não seriam facilmente decodificadas pelos invasores. Como Aragon explica em “Arma Virunque Cano”, o prefácio de Les Yeux D’Elsa batizado com os versos que abrem a Eneida de Virgílio:

Je chante l’hommes et ses armes, c’en est plus que jamais le moment (…). Et mon chant ne se peut refuser d’être ; parce qu’il est une arme lui aussi pour l’homme désarmé, parce qu’il est l’homme même, dont la raison d’être est la vie. Je chante parce que l’orage n’est pas assez fort pour couvrir mon chant, et que quoi que demain l’on fasse, on pourra m’ôter cette vie, mais on n’éteindra pas mon chant (p. 30).

Neste texto, apresento uma livre adaptação do poema “Richard Cœur De Lion”, parte da referida obra, que faz referência al rei Ricardo, chamado “Coração de Leão” (1157-1199), que viveu no período de maior florescimento da poesia provençal. Ao atravessar a fronteira do Santo Império no retorno de uma cruzada, o rei Ricardo Coração de Leão foi capturado pelas tropas austríacas e aprisionado na torre do castelo de Trifels. Conforme a lenda, o trovador Blondel de Nesle, amigo de Ricardo, o procurou de castelo em castelo até que, ao chegar ao lugar onde estava cativo, entoou um canto que somente era conhecido pelo dois, ao qual Coração de Leão respondeu de sua cela. Esse foi o sinal de que Blondel voltaria para resgatá-lo.

De forma paralela a esta lenda, o poema “Richard Cœur De Lion” foi escrito em junho de 1941, quando Louis Aragon e Elsa Triolet, após cruzar clandestinamente a linha de demarcação, foram detidos pelos soldados nazistas na cidade de Tours, durante três semanas. Ali, Aragon se identifica com Ricardo Coração de Leão e escreve o poema, que ele concebe como um canto cifrado de esperança para todos os franceses.

Tradução textual do poema para o português
Richard Cœur De Lion

Si l'univers ressemble à la caserne
À Tours en France où nous sommes reclus
Si l'étranger sillonne nos luzernes
Si le jour aujourd'hui n'en finit plus

Faut-il garder le compte de chaque heure
Haïr moi qui n'avais jamais haï
On n'est plus chez soi même dans son cœur
Ô mon pays est-ce bien mon pays

Je ne dois pas regarder l'hirondelle
Qui parle au ciel un langage interdit
Ni s'en aller le nuage infidèle
Ce vieux passeur des rêves de jadis

Je ne dois pas dire ce que je pense
Ni murmurer cet air que j'aime tant
Il faut redouter même le silence
Et le soleil comme le mauvais temps

Ils sont la force et nous sommes le nombre
Vous qui souffrez nous nous reconnaissons
On aura beau rendre la nuit plus sombre
Un prisonnier peut faire une chanson

Une chanson pure comme l'eau fraîche
Blanche à la façon du pain d'autrefois
Sachant monter au-dessus de la crèche
Si bien si haut que les bergers la voient

Tous les bergers les marins et les mages
Les charretiers les savants les bouchers
Les jongleurs de mots les faiseurs d'images
Et le troupeau des femmes aux marchés

Les gens du négoce et ceux du trafic
Ceux qui font l'acier ceux qui font le drap
Les grimpeurs de poteaux télégraphiques
Et les mineurs noirs chacun l'entendra

Tous les Français ressemblent à Blondel
Quel que soit le nom dont nous l'appelions
La liberté comme un bruissement d'ailes
Répond au chant de Richard Cœur-de-Lion

Ricardo Coração de Leão

Se o universo parece a caserna
Em Tours, na França, onde estamos presos
Se o estrangeiro sulca nossa alfafa
Se o dia hoje não termina mais

É preciso seguir contando as horas?
Odiar, eu que nunca odiei?
Nem no coração estamos em casa
Oh meu país, ainda é meu país?

Eu não devo olhar a andorinha
Que fala ao céu a língua proibida
Nem ir embora a nuvem infiel
Contrabandista de sonhos de outrora

Não devo dizer aquilo que eu penso
Nem murmurar essa aria que eu amo
Deve-se temer até o silêncio
E também o sol, como o mau tempo

Eles são a força, e nós o número
Vocês que sofrem, nos reconhecemos
Ainda que a noite escureça mais
Pode um prisioneiro ainda cantar

Uma canção pura como a água limpa
Branca como o pão de antigamente
Que sabe subir sobre a manjedoura
Tão alto que os pastores podem ver

Todos os pastores, nautas e magos
Os carroceiros, sábios e açougueiros
Mala-palavristas e os santeiros
Rebanho de mulheres nos mercados

Gente do comércio e do trânsito
Quem faz o tecido e também o aço
Quem sobe aos postes telegráficos
E os mineiros negros escutarão

Os franceses semelham-se a Blondel
Seja como for que nós o chamemos
A liberdade, como asas, responde
Ao canto de Coração de Leão

Segunda versão: adaptação contextual do poema

Apresento, a seguir, uma adaptação livre do poema, na qual, em lugar de tratar da Segunda Guerra Mundial, me refiro ao genocídio do povo palestino em Gaza, atualmente em curso. Minha tradução parte de uma decisão ética e política. Se Louis Aragon, sob a inspiração dos trovadores provençais, usou seus poemas para transmitir uma mensagem de esperança em meio à guerra, entendi que posso fazer o mesmo com esta tradução. Minha versão alude também a poetas da Palestina que, em meio ao genocídio em Gaza – que, como sabemos, não começou em 07 outubro de 2023 – decidiram fazer de suas palavras uma arma de esperança para seu povo. Assim, nesta versão, os novos Blondel de Nesle são Mohammed El-Kurd, Marwan Makhoul, Mahmoud Darwish, Refat Alareer, alguns dos quais foram assassinados pelas forças de ocupação israelenses. Menciono, a seguir, alguns versos destes poetas, que traduzi para o português a partir das traduções em español de Siham El Khoury Caviedes, disponíveis no artigo “Un lenguaje de acero para el alma: La Poesía de la resistencia palestina” (2024).

Se Aragon se pergunta “Faut-il (…) Haïr moi qui n'avais jamais haï [ ?]”, El-Kurd afirma: “Meu pai dizia: a raiva é um luxo que não nos podemos dar’. […] Por isso bailamos” (El Khoury Caviedes, 2024). E por isso, como El-Kurd, minha versão de “Richard Cœur de Lion” menciona a dabke, dança de resistência palestina, que persiste mesmo entre as bombas. Se Aragon, em “Arma virunque cano”, o prefácio de Les Yeux d’Elsa, defendeu a importância de seu canto em tempos de guerra, declarando “on pourra m’ôter cette vie, mais on n’éteindra pas mon chant” (p. 30), Alareer escreveu, antes de ser assassinado: “Se devo morrer, que traga esperança, que se converta em um conto” (El Khoury Caviedes, 2024). Por sua vez, Makhoul disse: “Para escrever poesia que não seja política/ devo escutar os pássaros/ e para poder escutá-los/ os aviões de guerra devem se calar.” (ibid.) enquanto no poema de Mahmud Darwish podemos ler: “Quero uma linguagem de aço parra a alma, que eu possa utilizar contra esses aviões. Quero uma linguagem na qual possa me apoiar (…), que me torne testemunha e que seja testemunha do poder que há em nós para superar este isolamento” (ibid.).

Nesta minha versão, que parafraseia o poema original, ao longo das estrofes menciono vários símbolos que fazem referência à luta dos palestinos. Em lugar das alfafas dos campos franceses estão as oliveiras palestinas, cortadas pelos colonos israelenses; em lugar da andorinha está a pomba, símbolo de esperança. No texto aparecem a chave, imagem do retorno às suas casas de origem, a keffieh, lenço que exibe a identidade palestina e o tatreez, bordado típico deste povo. Em lugar de um operário sobre um poste telegráfico, um muezzin sobre um minarete. As mulheres já não estão nos mercados, mas levam os corpos mortos de seus filhos. O local da “manjedoura” bíblica, em lugar de pastores, também está sujeito às bombas. E se o poema original diz que a canção pura pode subir tão alto que todos poderão vê-la, agora todos veem um genocídio transmitido ao vivo pelas redes sociais.

Ainda assim, eu quis transmitir um canto de esperança. Se em sua prisão Aragon se calava, não ousava dizer o que pensava nem cantar a ária que tanto amava – La Marseillaise? – os palestinos de minha versão do poema decidem continuar falando, dançando a nakbe, rezando, bordando o tatreez, usando seus bodoques e vozes como instrumentos de resistência. Um canto pode libertar a um povo, assim como a Coração de Leão.

Richard Cœur De Lion

Si l'univers ressemble à la caserne
À Tours en France où nous sommes reclus
Si l'étranger sillonne nos luzernes
Si le jour aujourd'hui n'en finit plus

Faut-il garder le compte de chaque heure
Haïr moi qui n'avais jamais haï
On n'est plus chez soi même dans son cœur
Ô mon pays est-ce bien mon pays

Je ne dois pas regarder l'hirondelle
Qui parle au ciel un langage interdit
Ni s'en aller le nuage infidèle
Ce vieux passeur des rêves de jadis

Je ne dois pas dire ce que je pense
Ni murmurer cet air que j'aime tant
Il faut redouter même le silence
Et le soleil comme le mauvais temps

Ils sont la force et nous sommes le nombre
Vous qui souffrez nous nous reconnaissons
On aura beau rendre la nuit plus sombre
Un prisonnier peut faire une chanson

Une chanson pure comme l'eau fraîche
Blanche à la façon du pain d'autrefois
Sachant monter au-dessus de la crèche
Si bien si haut que les bergers la voient

Tous les bergers les marins et les mages
Les charretiers les savants les bouchers
Les jongleurs de mots les faiseurs d'images
Et le troupeau des femmes aux marchés

Les gens du négoce et ceux du trafic
Ceux qui font l'acier ceux qui font le drap
Les grimpeurs de poteaux télégraphiques
Et les mineurs noirs chacun l'entendra

Tous les Français ressemblent à Blondel
Quel que soit le nom dont nous l'appelions
La liberté comme un bruissement d'ailes
Répond au chant de Richard Cœur-de-Lion

Ricardo Coração de Leão

Se o universo parece as barracas
Em Rafah, Gaza, onde estamos presos
Se o colono arranca as oliveiras
Se o dia hoje não termina mais

É preciso seguir contando as bombas?
Odiar, um luxo que não posso ter
Eu guardo a chave pra voltar pra casa
Oh meu país, roubaram meu país

Eu continuarei a olhar a pomba
Que conta ao céu os sonhos proibidos
E esperar, entre nuvens de fumaça
Contrabando de ajuda humanitária

Continuarei a dizer o que eu penso
E a dançar a dabke que eu adoro
Já não temerei o som ou o silêncio
Nem sequer o sol, ou o mau tempo

Eles são a força, e nós a honra
Na resistência, nos reconhecemos
Ainda que a noite escureça mais
Pode um prisioneiro ainda cantar

Nosso povo não tem mais água limpa
Nem tampouco o pão que nos roubaram
Bombardeiam o lugar da manjedoura
Num genocídio ao vivo na TV

Todos os pastores e os marinheiros
Meninos e rapazes com bodoques
Jornalistas, fotógrafos de imprensa
Mulheres com bebês em panos brancos

Os comerciantes e os estudantes
Quem faz as keffieh e borda tatreez
Os muezzin que sobem aos minaretes
Rebeldes nos túneis escutarão

Palestinos ouvem novos Blondel
El-Kurd, Makhoul, Darwish, Alareer
Um canto pode libertar um povo
Assim como a Coração de Leão


Referências bibliográficas

Aragon, L. (1986). ARMA VIRUNQUE CANO, préface. In Les yeux d’Elsa (pp. 7-32). Paris: Seghers (publicação original em 1942).
Aragon, L. (1986). La leçon de Ribérac ou l’Europe française. In Les yeux d’Elsa (pp. 113-138). Paris: Seghers (publicação original em 1941).
Aragon, L. (1986). “Richard Cœur de Lion”. In Les yeux d’Elsa (pp. 73-74). Paris: Seghers (publicación original en 1942).
El Khoury Caviedes, S. (2024, 21 enero). “Un lenguaje de acero para el alma”: La Poesía de la resistencia palestina. Nexos. Cultura y vida cotidiana. Link
La ligne de démarcation (1940-1944) | Chemins de mémoire. Link
Lautman, Jean-Pierre (2020). Aragon et Elsa incarcérés à Tours l’été 1941. Chroniques tourangelles de L’Académie des Sciences, Arts & Belles-Lettres de Touraine, 4. PDF

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