24 de janeiro de 1911
As cidades europeias têm as suas estações bem definidas: a estação das flores, a do cair da neve, a do cair das folhas e das frutas. Nós, bem acentuadas, no Rio de Janeiro, só temos duas: a dos teatros e a dos ladrões. A bem dizer, esta dura todo o ano, mas tem a sua maior intensidade nos meses de calor e das janelas abertas. Em fevereiro e março ela floresce exuberantemente em Santa Teresa. Pelo menos, tem sido assim nos últimos anos.
Os senhores gatunos não são tolos; procuram na quadra mais asfixiante o ar fresco da montanha para poderem operar à vontade. Depois isto: além de respirarem ar mais leve, não precisam correr. O esforço da corrida no verão prejudica os organismos mais sãos, eles sabem disso e poupam-se. Em Santa Teresa podem andar a passo, ir de um arrombamento a outro arrombamento sem sustos, nem precipitações, na doce certeza de que não esbarrarão no caminho nem sequer com a sombra de uma sombra de polícia...
Pelas imediações do carnaval, antes, a fim de arranjar dinheiro para as folganças; depois, para equilibrarem os seus orçamentos desfalcados, os senhores gatunos redobram de atividade. Os galinheiros tremem. Não há Chantecler capaz de defender a sua amada faisã ou pintade das garras sujas desses patifes. Os gansos perdem a voz, na comoção do espanto, e os próprios cães de fila murcham os corpos de encontro aos muros, com o terror de serem percebidos. Tudo serve aos ladrões, desde a rodilha de lavar panelas, esquecida pela cozinheira no coradouro ou na borda do tanque, até o relógio de ouro do proprietário da casa em cujo quarto de dormir penetram com inacreditável desfaçatez! Fazer dinheiro, não importa como nem com quê. Tudo o que cai na rede é peixe; leva-se assim de cambulhada regadores e leques de tartaruga, pulseiras e pás de lixo!
Os moradores de Santa Teresa estão, portanto, agora na época dos sobressaltos, a que corresponde, nas cidades europeias, à estação das violetas. Ninguém se deita sem examinar todos os cantos da casa e muito especialmente a parte do assoalho que lhe fique embaixo da cama. As cestas das roupas para a lavadeira são esquadrinhadas, como se procurassem nelas agulhas e alfinetes em vez de homens armados de lanternas e de pés de cabra! Não, que há sujeitinhos tão magros... Vãos de escadas, armários de livros, de louças ou de vestidos, tudo é visto, não uma, mas duas, três vezes, já depois das portas fechadas e trancadas, por precaução. As crianças vão-se deitar com medo; os homens, mal adormecem, são logo despertados pela família, que ouviu passos nas areias do jardim ou ouviu bulir nas telhas do telhado... Eles resmungam, que não façam caso; devem ser as gambás. As senhoras afirmam que a bulha não podia ser confundida com a que fazem as gambás e insistem por uns tirozinhos na janela...
Às vezes são as gambás que também andam alvoroçadas por este tempo; outras vezes não são elas, são eles, que disfarçam na sombra o vulto dos seus corpos, esperam com paciência verdadeiramente evangélica que esse pessoal aterrorizado adormeça, para então entrarem-lhe em casa por um buraco da fechadura ou por uma régua da veneziana.
Ainda está para nascer o nosso Sherlock Holmes e é pena. É pena, porque ele teria agora excelente ocasião de provar as suas habilidades. Prestando um pouco de atenção aos noticiários dos jornais tem me parecido perceber que as quadrilhas de ladrões no Rio de Janeiro obedecem a um itinerário, estabelecido por ordem de bairros.
Após as queixas dos moradores de Santa Teresa, começam as do Estácio de Sá, Engenho Velho, etc. Para desorientar a polícia, como se ela precisasse disso, há de vez em quando um caso isolado, aqui ou além, de furto ou de arrombamento, com a intenção de chamar para pontos dispersos a atenção dos senhores guardas. E enquanto os senhores guardas se dirigem para aqueles lados, indagando da vizinhança o que houve, o que há ou o que haverá, os senhores ladrões, mais à vontade, trabalharão do seu lado.
Não há, para a gente se interessar por essas coisas, como já ter sido vítima delas, pelo menos nuns quatro carnavais consecutivos, como uma certa família minha conhecida!
Mas deixemos os ladrões na sua lida, já que é preciso que todos vivam e eles, coitados, talvez não saibam fazer mais nada – e lamentemos em coro o fechamento de mais uma escola pelo sr. prefeito.
É a segunda; e se a sua supressão foi aconselhada como medida de economia, não tardará a ser fechada a terceira, a quarta e assim por diante.
Ora, se há num país de analfabetos, como ainda é o nosso, despesas que não se devem suprimir, são as despesas feitas com a instrução popular. É melhor pôr livros nas mãos das crianças e dos adultos ignorantes e elucidá-los por meio de mestras bem educadas, do que ter de sustentá-los mais tarde em correções e em hospícios, ou sofrer vexames por atos de que só a sua ignorância é culpada. A primeira escola agora suprimida foi a escola ao ar livre, do que tive tanto mais pena quanto vaidosamente a supus sugerida por mim. Exatamente por considerar como benefício à saúde e ao espírito das crianças o estudo feito à sombra das árvores, em pleno coração da natureza, tenho de há muito, na seção do Correio da roça, descrito aqui com entusiasmo uma escola de fazenda (e oxalá que o exemplo se propagasse entre elas!) em que a criançada aprende a ler num bosque de jabuticabeiras.
A minha escola ao ar livre, de uma suposta propriedade agrícola, teve o condão de me fazer simpatizar com esta de Copacabana, fundada pelo sr. dr. Serzedelo Correia.
Tinha fé em que ela progredisse e desse excelentes frutos. Mas a pobre nem teve tempo para a floração. Deceparam-na e, atrás dela, já caiu outra escola. Queira Deus que fiquemos nisto!...
É de supor que fiquemos, mesmo porque de todos os jornais se levantou um enxame de protestos, alguns francos e outros disfarçados, acerca deste caso inesperado e estranho. O mal de deficiência de escolas não é só nosso. É do Brasil inteiro. Agora mesmo acabo de ler um artigo da professora Edwiges de Sá Pereira, publicado no Jornal Pequeno, de Pernambuco, em que essa senhora lembra o alvitre de se reunirem na Capital Federal, todos os anos, em um certo prazo, delegados das escolas normais estaduais, com o fim de, observando os nossos progressos escolares, poderem imitá-los nas escolas públicas das suas respectivas terras.
Para que essas reuniões fossem realmente proveitosas, não seria preciso que o quadro geral das nossas escolas primárias não deixasse nada a desejar? Estamos constantemente a ouvir falar em programas, mobiliários escolares modernos, reformas, etc., etc., para depois dizerem os jornais que em colégios municipais do próprio Distrito Federal há crianças que se sentam em caixotes de vendas, por falta de bancos, e professoras clamando em vão por livros e por mapas!
Virgem Nossa Senhora, como as coisas simples são complicadas! Os tempos passam e o morro de Santo Antônio continua no mesmo estado dúbio e triste de expectativa e de incerteza. A estrada para Petrópolis, certamente muito linda e de grande conforto, fez encolher-se a face larga e barrenta do desgraçado, em um quase imperceptível rictus de ironia. Até a floresta ia, ou vai ter, o seu largo sulco de civilização e de claridades no imenso corredor que una o ardente Rio à casta e linda Petrópolis! Só ele, o mísero, assistirá, sujo e trevoso, inculto e selvagem, à alegria e à limpeza dos outros que o cercam por todos os lados, bem no centro da capital, sem poder nem ao menos lavar o rosto, visto que, por mais que exclame, e grite e chore, nem lhe dão água...
Mas, como não é só a água que lhe falta, mas tudo, será mesmo preferível não lhe darem coisa nenhuma!
Texto publicado no livro Júlia do Rio - Crônicas da belle époque carioca.
¹ Referência ao personagem Chantecler, presente em uma coleção de poemas medievais europeus, majoritariamente anônimos, compostos em torno de 1170 a 1250, que depois foram reunidos no famoso Roman de Renart [Romance da raposa]. Os personagens dessas histórias são animais e Chantecler é um galo, o dono do galinheiro. No entanto, o personagem principal é Renart, a raposa, que engana outros animais antropomórficos para sua própria vantagem. (N.E.)
² Em francês, “pintada”. Uma ave da ordem dos Galiformes, assim como o faisão, que a autora também menciona nesse trecho. (N.E.)
³ Em latim, “ríctus”, “ricto”. Segundo o dicionário Michaelis, é a “contração dos lábios ou dos músculos da face, que dá ao rosto a aparência de riso forçado”. (N.E.)