Nem síndrome, nem impostora: o nome disso é gênero e poder

Débora Thomé

Costumo dizer que meu pensamento e minha prática feministas são bem próximos do título do livro da Roxane Gay: sou eu a “bad feminist”, sempre lendo e usando referências de cunho duvidoso. Como má feminista, adoro aprender com séries, filmes, livros, muitas vezes considerados um pouco fora da cartilha. Assim, ultimamente, tenho me encantado com o feminismo do seriado Hacks (HBO Max).

Pois bem, numa das cenas que mais me emocionaram, a personagem principal, uma adorável comediante, mas politicamente incorreta até o limite, procura um antigo diretor de TV para entender quais foram os defeitos que a impediram de ocupar um papel de maior destaque na televisão. Sem hesitar, o antigo chefão diz, quase meio século depois, que ela não tinha nenhum defeito, mas, sim, foi julgada por ser mulher. Com um divórcio recente, simplesmente não foi aceita pelos anunciantes, mesmo tendo feito o melhor programa a que ele já assistira.

Curioso que esta cena me lembrou uma das minhas primeiras aulas no colégio na Zona Sul do Rio de Janeiro, no terceiro ano, quando cheguei do interior. Ao levantar a mão e responder uma pergunta com firmeza, um dos colegas logo emendou: para uma minhoca, você vai muito bem.

Com esses dois exemplos (poderia incluir mais uma centena), chegamos ao tema que realmente me interessa falar neste texto, para debater ideias sobre gênero e poder: o conceito todo errado, replicado por aí, da “síndrome da impostora”. Para quem não está familiarizada com a ideia, tratar-se-ia de uma “síndrome” que acometeria sobretudo mulheres que temeriam ser descobertas como uma fraude. Ou seja, essas mulheres viveriam com medo, sob constante ameaça, pois acreditam que não detêm qualidades desejadas ou exigidas para exercer determinadas funções, sobretudo relacionadas ao trabalho remunerado.

Entendida como síndrome, mulheres deveriam, para combatê-la, recorrer ao trabalho de psicólogas/os e coachs capazes de “empoderá-las”, trazendo a autoestima necessária, da qual são desprovidas. Os estudos mais recentes sobre o tema, como este publicado na Harvard Business Review, têm questionado o foco da síndrome na mulher por uma razão muito simples: em um mundo em que as mulheres têm que pagar um preço muito maior para ter sucesso e ascender a cargos de poder, somente por serem mulheres, trata-se, isso sim, de um viés de gênero institucional puro e simples. Vem de fora de nós, não de dentro! Pior: quando interseccionamos com outras categorias, como raça e classe, as dúvidas expostas pelo mundo sobre nossa capacidade de realização aumentam ainda mais.

Em contextos nos quais temos que exibir mais conhecimento e eloquência, em que somos questionadas a todo instante sobre se realmente sabemos o que sabemos (o relatório da McKinsey mostra que quase a metade das mulheres, 40%, vivem episódios assim), está longe de ser uma síndrome quando nos sentimos inseguras. Como consequência, naturalmente, optamos em vários casos por abdicar de nossa ambição e de nossos sonhos. Isso não porque intrinsecamente nos achamos ruins, mas, sim, porque o mundo não para de nos dizer que o somos: insuficientes.

Lendo este texto, algumas de vocês poderiam questionar: mas se eu me sinto assim, como afirmar que a síndrome não existe? Nesse sentido, meu principal ponto não é duvidar de como as pessoas se sentem individualmente, mas chamar a atenção para o fato de que este fenômeno tem contornos muito diferentes de uma síndrome individual e, portanto, exige soluções institucionais. Professoras e professores devem estar preparadas para garantir que meninas possam sem custo ser as melhores alunas da sala; redes de televisão devem garantir que boas apresentadoras terão seus programas, sejam elas quem forem.

Os dois exemplos que trouxe do passado parecem não ser mais possíveis nos dias de hoje, porém, acreditem, são casos análogos a esses que continuam fazendo com que você tenha medo do poder. E ainda tentam lhe convencer que a culpa é sua.


Débora Thomé é doutora em Ciência Política, autora de 11 livros, entre infantis e acadêmicos. Sobre questões de gênero, escreveu Candidatas (com Malu Gatto) e Mulheres e poder (com Hildete Pereira de Melo), ambos pela FGV Editora; The Other Fridas (com Luciana Namorato e João Nemi), pela Lexington Books; e 50 Brasileiras Incríveis para conhecer antes de crescer (Record).

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