Agnes Alencar
A Religião é o berço de muitas coisas, nem sempre coisas boas. Escrevo esse ensaio sentada em uma livraria na expectativa de que alguma autora, ou quem sabe seu fantasma, me inspire enquanto trilho um caminho que é no mínimo espinhoso. As intersecções entre gênero, religião e política se tornaram um emaranhado de realidades muito complexas cuja análise sempre requer cuidado. Se tornaram? — eu pergunto — Talvez hoje estejam mais evidentes, porém essas encruzilhadas sempre estiveram presentes e as tensões acompanharam a história do Cristianismo — que é a religião sob a qual me debruço em meus estudos e que será nosso foco aqui. Talvez então eu devesse reformular a primeira sentença do texto: o Cristianismo é o berço de muitas coisas, nem sempre coisas boas.
A religião — qualquer uma delas — não é uma realidade paralela. Não se trata de uma dimensão à parte do mundo real, um reino diferente do multiverso. Dentro do cristianismo, por exemplo, a relação com a cultura e os elementos políticos de cada época marcaram não apenas a forma como se lê a Bíblia, mas também como se experimenta a espiritualidade. Muitos dogmas e/ou das “verdades” teológicas que caracterizam o discurso cristão têm menos relação com o texto bíblico e mais conexão com o momento histórico em que são desenvolvidos. Quando voltamos nosso foco para a situação das mulheres e a misoginia reservada às suas vozes e seus corpos, isso se torna ainda mais gritante.
Por volta do ano 197 d.C., uma enorme reflexão sobre as vestimentas e as aparências das mulheres começou a circular. Sabemos pouco sobre a vida do autor, um homem cartaginense provavelmente filho de um centurião romano e com algum treinamento em legislação romana. Alguns afirmam que se trata de um padre, porém, em nenhum momento Tertuliano se apresenta como um membro ordenado do clero. Essa obra, Vestuário Feminino, pode ser lida integralmente online, mas eu recomendo que você se poupe dessa leitura. Escrita para o público feminino quase como uma carta, a obra gasta muito tempo não apenas construindo um parâmetro ético e moral para as mulheres, como também as culpando por todo o horror do mundo. A premissa é simples: cada uma de vocês mulheres é uma Eva, e como Eva são também portas de entrada do diabo no mundo.
Imagino que talvez alguns possam se perguntar o porquê de esta autora trazer para essa conversa um texto do primeiro século. Todavia, a violência que o texto de Tertuliano exala não é ingênua, e nem mesmo podemos dizer que ela ficou no passado. Eis a questão: Tertuliano é um dos membros da Patrística, um dos pais da Igreja, construtores da teologia na qual a experiência cristã se baseia. Sua forma de olhar para as mulheres como corpos perniciosos através dos quais o mal entra no mundo não ficou restrita a Cartago ou mesmo ao passado — segue viva e atuante nas estruturas teológicas contemporâneas e se atualiza no discurso comum que, por exemplo, culpabiliza uma mulher pelo mal do qual ela é vítima. As formulações de Tertuliano e suas leituras teológicas dizem menos do texto bíblico do que de uma cultura helênica que, em muitos momentos, subalterniza as mulheres.
Diferentemente do que somos ensinadas e ensinados, as mulheres por sua vez não apenas estão presentes no texto bíblico, como também são produtoras de teologias que se contrapõem às formulações masculinas. A teologia escrita por mulheres não é uma novidade; ao contrário, dentro e fora do texto bíblico, as mulheres têm articulado novas possibilidades e questionado as narrativas masculinas. Porém, nossos olhos foram treinados para apaziguar essas tensões e ignorar essas vozes. Teólogas feministas, por sua vez, têm nos ajudado não apenas a recuperar essas vozes, mas também a decifrar novos sentidos em meio a uma estrutura patriarcal que deliberadamente promove uma leitura enganosa do texto.
Perceber a misoginia e o patriarcado como uma construção dentro do cristianismo abre espaço para desmantelá-los. Se é uma construção, significa também que pode ser desconstruído. Nessa querela é que mulheres têm se inscrito ao longo dos últimos anos, produzindo textos e reflexões que colocam a si mesmas e os corpos daquelas cuja fala lhes foi negada no centro das reflexões. O corpo feminino, para autoras feministas, não é a porta de entrada do mal como Tertuliano escreveu, mas sim uma potência divina de vida através da qual o próprio Deus se tornou humano. O lugar do corpo feminino é reescrito, mas também a forma de ver o divino e nomeá-lo muda. Autoras como Ivone Gebara, Odja Barros, Delores S. Williams, Ivoni Reimer, Priscilla Ribeiro, Elisabeth Schüssler Fiorenza, Cleusa Caldeira, Marcella Althaus-Reid, Ana Ester e tantas outras têm ressignificado o cristianismo e seus símbolos corajosamente, deslocando o discurso de poder que inferioriza as mulheres e desafiando estruturas que as silenciaram por tanto tempo.
Reimaginar Deus é um exercício feminista fundamental para reconstruir o mundo, pois, enquanto o divino for masculino e patriarcal, o próprio patriarcado assume o status de divindade. Iniciei este ensaio afirmando que muita coisa começa dentro da Igreja — nem sempre coisas boas —, e as elaborações misóginas e patriarcais que uma leitura enganosa do texto bíblico pode proporcionar são apenas um exemplo. Desconstruir essas elaborações, um trabalho teológico, não apenas é político como também urgente. Se o cristianismo é o berço de muitas coisas, não há como ignorar que é também para esse lugar que precisamos retornar a fim de desmontá-las. Somente assim talvez um dia as vozes das mulheres e a sua forma de ver e nomear o divino possam recriar um mundo regido por outra ética. O cristianismo pode ser o berço de muitas coisas — às vezes também coisas boas.
Agnes Alencar é historiadora e teóloga feminista. Atualmente é doutoranda do programa de Ciências da Religião da UFJF. Atua como pesquisadora no ISER (Instituto de Estudos da Religião), como professora da educação básica e é pastora da Igreja Batista do Caminho. Ao longo dos últimos anos, tem produzido conteúdo online democratizando e ampliando o debate teológico e construindo espaços de crítica ao cristianismo hegemônico. É uma das idealizadoras do podcast EBDcast.









