Emanuela Siqueira
Para falar de futuro, é preciso começar pelo passado. É assim que fazemos na pesquisa feminista há décadas: escavamos antepassadas para que pesquisadoras do futuro façam a manutenção. Não temos nenhuma garantia, é verdade. Porém, nós que trabalhamos com a palavra – sejam aquelas que saíram de nossas cabeças, ou de outras metamorfoseadas nas nossas – confiamos sempre em quem vai ler, e isso só pode estar no tempo verbal do futuro. Aprendemos com Virginia Woolf a prática de abolir o espaço temporal em nome da eficácia de um projeto narrativo. Tudo está como em uma fita de Möbius, tem gosto de descoberta e eu confio nesse sentimento. Para mim, o novo é uma questão de ponto de vista e de tradução.
Começo pela descoberta. Laura Wittner, em Viver e traduzir, diz (nas palavras de Paloma Vidal e Maria Cecilia Brandi) que a tradução sempre nos leva a um lugar que não procurávamos, mas que nos é próximo. Descobrir esses lugares é o que move as tradutoras e todas as trabalhadoras da palavra e do livro. Eu ia começar falando de Hélène Cixous – essa escritura que esperamos tanto tempo para que dançasse em português brasileiro, com toda sua coreografia polissêmica. Porém, antes de ler Cixous, eu li Ana C. trocando cartas com Heloísa Teixeira. É com as duas que quero começar, essa faísca de futuro que ganhei como leitora e que me trouxe até aqui.
É quase desnecessário falar da importância de Heloisa Teixeira para os estudos feministas brasileiros. Ela mesma alardeou (estando presente) e fez tudo que tinha que fazer até o fim: a Coleção Pensamento Feminista não deixa mentir, assim como todos os livros que escreveu e organizou pela Bazar do Tempo. Mas sabe o que mais me pega? É a prática feminista mais comezinha, no sentido caseiro da coisa mesmo: como algumas mulheres construíram verdadeiras redes intelectuais pela via da amizade e da linguagem que fugia da lógica masculina objetivista.
Entre 1979 e 1980, algumas cartas chegaram à rua Faro, 21, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Ana Cristina Cesar, sob alcunha de Ana C., estava na Inglaterra com uma bolsa de estudo, e endereça esses escritos a vocativos como “Helô, dearest of my heart”, “Helô, querida do coração”, “Helô, love” e “Helô, paixão”. Não faço muita ideia de como era a amizade das duas antes ou de como seguiu sendo pelos próximos três anos de vida de Ana. Sei o quê Helô fez a partir e com a obra de Ana Cristina em nome do futuro. Das cartas, tenho apenas essas, que saíram na Correspondência Incompleta (IMS, 1999) e são as que Ana escreveu; talvez, isso baste. Em outubro de 1979, Ana revela à Helô que largou o curso de Sociologia da Literatura para fazer um de Teoria e Prática de Tradução. O coração da leitora-tradutora dispara nesse momento – eu sei o que Ana iria fazer a partir desse curso. Nós sabemos o que Helô fez com o material que Ana contava estar lendo, pesquisando e que acabou mandando e trazendo da Inglaterra no período que ficou por lá. A amiga manda cópias de textos desde Foucault e Barthes para Heloísa; lendo as cartas de Ana, daqui do Brasil, Helô começa a pedir mais, em especial as mulheres. Ana está obcecada por Katherine Mansfield e, por conta dos pedidos de Helô, começa a estudar muito toda a cena de crítica literária feminista que está se desenvolvendo em alta velocidade nos países de língua inglesa. Inclusive, depois de ler Madwoman in the Attic, de Sandra Gilbert e Susan Gubar [que esta que escreve esse texto, aqui do futuro, está traduzindo junto com Marcela Lanius e Maria Rita Drumond Viana], Ana queria muito publicar uma resenha sobre o livro em algum suplemento literário brasileiro. Infelizmente não o fez, porém podemos ter um vislumbre do rascunho no trabalho Atrás dos olhos pardos, de Maria Lucia de Barros Camargo.
Olhando a imponência colorida da coleção Pensamento Feminista, não imaginamos que alguns dos textos como os clássicos “Tecnologias de gênero”, de Teresa de Lauretis, e “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, de Joan Scott, fazem parte dos tantos que Heloisa foi responsável em trazer de forma pioneira ao Brasil, desde a década de 1990. Boa parte da nossa formação feminista, de crítica cultural, começou com a saudosa coletânea Tendências e Impasses, organizada por ela e publicada em 1994, pela editora Rocco — e ponto de partida para o volume Pensamento Feminista – Conceitos fundamentais, de 2019. Portanto, olhar para essa coleção é ver (e escutar) uma conversa íntima de amigas tomar forma, ganhar o mundo, formar críticas, escritoras, tradutoras e leitoras.
Em O manifesto das espécies companheiras (tradução de Pê Moreira), Donna Haraway propõe um tipo de parentesco que não se relaciona com trocas genéticas, semelhanças etc., mas “[...] também por meio de conexões insólitas e inesperadas com uma ampla comunidade multiespécie”. Foi a tradução que me levou a pensar melhor sobre essa noção de kinship. E é um pouco isso que fazemos com a linguagem escrita e traduzida, como podemos vivenciar na leitura de Autobiografia de um polvo, de Vinciane Despret, que na tradução de Milena Duchiade – narrada por esse texto bonito da Ciça (Ana Cecilia Martins) sobre uma troca de e–mails entre editora e tradutora – ganha muitas camadas de parentesco que fazemos com os textos que trabalhamos.
Sim, a tradução é uma prática que faz mover todas as pessoas envolvidas com o texto, criando laços de amizade, nem que sejam temporários. Mesmo que um livro demore décadas para ressoar na nossa língua materna, vai chegar com o vigor de palavras que foram realocadas uma a uma. “Traduzir é ficar colada nas costas de alguém”, diz Laura Wittner. Seja em Viver e Traduzir, cheio de notas da autora-tradutora, abraçadas às das tradutoras brasileiras numa profusão dialógica, ou em A Insubmissa, de Cristina Peri Rossi, traduzida por Anita Rivera Guerra, que economiza nas notas mas nos arremata com a intimidade do seu posfácio: estamos insistentemente presentes. Quando traduzi A beleza do marido, de Anne Carson, com Julia Raiz – que já tinha ficado obcecada com o amor, enquanto traduzia Eros, o doce-amargo – decidimos que a tradução seria um tango dançado em duas. Só que, diferentemente da dança homem-mulher, onde alguém conduz, nós queríamos acertar os passos e dançar mantendo um equilíbrio todo nosso, conduzidas pela própria Carson. Assim foi, também, com a correspondência trocada entre Virginia Woolf e Victoria Ocampo: três tradutoras (Nylcéa Pedra, Rosalia Pirolli e eu), operando em línguas diferentes, fomos testemunhas e sucessoras de cartas entre duas mulheres notáveis do século XX, trabalho que resultou em Victoria Ocampo & Virginia Woolf – Correspondência.
Por isso me assusto sempre que leio: “É preciso ter testemunhas e sucessoras para abrir caminhos pelos ares”, escrito por Cixous em O riso da Medusa, ou melhor, reescrito pela dupla Natália Guerellus e Raísa França Bastos, que fazem Cixous voar na minha língua materna. As tradutoras testemunham e arremessam ao futuro estes textos com asas. Boa parte das que estão atravessadas nas traduções que a Bazar do Tempo publica, testemunham cada palavra e vírgula dessas autorias, fazendo os textos sucederem, chegarem no futuro como se fôssemos, nós, tradutoras, um tipo de guardiãs, trocando cartas com as leitoras que virão.
Muitas vezes eu fui essa leitora. Quantas autoras talvez eu nunca teria lido se não fossem as traduções de Larissa Bontempi para Febre de Carnaval, de Yuliana Ortiz Ruano, ou Arelis Uribe, com um dos livros que espelha a minha geração (só que no Chile) com As vira-latas, traduzida pela Silvia Massimini Felix; só para citar as latinas como nós. E o que dizer de clássicos que mexem com nossas percepções feministas de literatura: Um quarto só seu, de Virginia Woolf, que mesmo tendo lido algumas dezenas de vezes, descobri novos rastros de pensamentos com a tradução de Julia Romeu – o tipo de tradutora que não abro mão quando se trata de século XIX e começo do XX, lembrando que ela traduziu também A idade da inocência, de Edith Wharton; e ainda o assustador Papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, traduzido por Heloisa Seixas, que nos leva para dentro de um quarto, onde uma mulher é confinada na virada de século e para outras histórias que dão nitidez para o incrível projeto da escritora estadunidense.
A tradução nos dá material sólido para encararmos o futuro – pensando na coleção Desnaturadas, com autorias que cutucam qualquer certeza que achamos ter diante dos vários modos de fazer ciência. A tradução também nos pede responsabilidade diante do passado, como é o caso da Você lembrará seus nomes, uma antologia de poesia negra feita por mulheres nos Estados Unidos, apostando em um gênero literário dissidente dentro do mercado editorial. O volume se impõe consciente da necessidade urgente de lermos e ouvirmos os versos de poetas como Nikki Giovanni, Jayne Cortez, Lucille Clifton, Alice Walker e tantas outras, reunidas por Lubi Prates e traduzidas por um time de tradutoras e pesquisadoras que precisam ter mais espaço nesse mesmo mercado não muito afeito aos versos.
Sigo pensativa nas cartas trocadas entre Ana C. e Heloisa, sendo escritas na individualidade das suas escrivaninhas e salas com o sabor de um dia qualquer. Penso nelas e no parentesco que faço com as mulheres que trabalham nesses livros traduzidos, que me instigam a querer viver o futuro para ver o que a literatura escrita por mulheres fará, como aposta Cixous. Como pode aquelas cartas trocadas entre duas amigas chegarem até nós, quatro décadas depois, e nos fazerem lembrar porque ainda nos espantamos ao ler outras mulheres como Marguerite Duras, Anne Lafont, Marina Tsvetáieva, Betina González, Fatima Daas, Dionne Brand, Isabelle Stengers, que não nos deixam imaginar nenhum mundo sem elas, pois suas tradutoras nos fazem sonhar com todas falando português brasileiro.
As tradutoras escrevem para o futuro e são as leitoras que fazem a manutenção dessa amizade que surge pela — e para além da — linguagem.
Emanuela Siqueira é mestre e doutora em estudos literários (UFPR), com pesquisa sobre estratégias feministas na tradução. Entre as traduções publicadas destacam-se A beleza do marido, de Anne Carson, com Julia Raiz, e Victoria Ocampo & Virginia Woolf – Correspondência, ambas pela Bazar do Tempo.