Ana Cecilia Impellizieri Martins
Milena Duchiade viveu na companhia de muitos livros e línguas, circulando por entre estantes repletas de edições vindas dos quatro cantos do mundo, que faziam da Leonardo da Vinci, livraria empreendida por sua mãe, a italiana Vanna Piraccini, e seu pai, o romeno Andrei Duchiade, o lugar mais próximo da imagem criada por Borges de um paraíso. O conjunto de salas envidraçadas no subsolo do Edifício Marquês do Herval, ícone modernista, no Centro do Rio, onde a livraria se instalou em meados dos anos 1950, era um verdadeiro oásis para os leitores mais vorazes e ponto de encontro com livros que só podiam ser encontrados ali.
A partir do fim dos anos 1990, Milena assumiu o negócio ao lado da mãe, dona Vanna, como era conhecida, mantendo pelas décadas seguintes sua irretocável reputação, o acervo precioso e a aura familiar, uma das marcas responsáveis pelo o sucesso do lugar. Já em tempos de vendas on-line, da concorrência desleal, em 2016 Milena e Vanna passaram a livraria adiante, vendendo-a para o livreiro Daniel Louzada, que promoveu mudanças para encontrar novos públicos e formatos.
Foi nesse momento que Milena, médica infectologista de formação, passou a se dedicar à tradução de livros, do francês para o português, e que nos conectamos. Em um primeiro e-mail, ela sugeria alguns títulos para publicarmos. Estava ligada aos lançamentos internacionais, a autoras e autores, um velho e bom vício de livreira. Tínhamos adquirido os direitos de Curar o ressentimento, obra de grande sucesso na França da filósofa e psicanalista Cynthia Fleury, e lhe propusemos a tradução, prontamente aceita. Estávamos em plena pandemia e o trabalho de pesquisa era, portanto, mais desafiador, pois não permitia acesso a livros físicos, visitas a bibliotecas ou livrarias. Nada, no entanto, que assustasse o espírito determinado de Milena, que cavou edições, evocou ajudas em editoras e instituições, até ter em mãos todas as referências que precisava para o trabalho impecável. Ao enviar o arquivo, ela escreveu:
“Tenho muito orgulho dessa tradução, modéstia à parte. Foi um trabalho de muita pesquisa e paciência, recebi ajuda de muita gente, o instituto Castoriadis, em Portugal, um amigo em Lisboa, as editoras UBU (Fanon), Carambaia (Huyssman) e Amaryllis (Manole), que me enviaram os trechos que precisava, numa hora que a BN estava fechada. O Instituto Goethe foi essencial, amigos que tinham as OC do Freud, psiquiatras, etc, etc.
Demorei muito, mas me salvou durante aquele pesadelo do primeiro ano da pandemia, trancada em casa.
Espero que tudo esteja OK, estou louca para ver o livro na rua.
Grande abraço,
Milena”
Estava orgulhosa pois sabia reconhecer o resultado de um trabalho sério e tinha prazer com isso. Que coisa boa, afinal.
Na tradução seguinte, Autobiografia de um polvo, de Vinciane Despret, Milena mergulhou no tema com o mesmo grande apetite e, fato não muito comum no nosso meio, entregou o trabalho bem antes do prazo combinado e explicou a razão, a iminência da chegada do primeiro neto:
“É com grande alegria que envio a tradução do livro da Vinciane Despret, Autobiografia de um polvo.
Fico feliz por entregar o texto num prazo inferior a um mês, enquanto o prazo solicitado por vocês havia sido de dois meses (e eu o havia estendido para três, ao assinar o contrato). Estava com medo de meu primeiro neto nascer nesse período, mas ele está calmamente aguardando a data provável do parto.
Fiquei completamente maravilhada com o texto, me abriu muitos horizontes totalmente desconhecidos.
A riqueza de referências da autora é absolutamente impressionante.
A necessidade de consultar traduções em português, para algumas citações, se reduziu na verdade ao livro de Deleuze & Guattari (Mil Platôs), ao Michel Serres (O Contrato Natural), além do próprio texto da Ursula Le Guin, todas traduções disponíveis na internet. Houve também duas pequenas referências de Nietzsche e do Jacques Cousteau, ambas fáceis. [O livro da Cynthia Fleury, com Freud, Reich, Nietzsche, Platão, etc. foi bem mais trabalhoso e demorado nesse sentido. Aliás, any news?].
Espero que gostem de meu trabalho. Acho que (modéstia à parte) ficou bastante bom, e que a revisão não terá do que reclamar.
Claro que, como dizia Millôr, um livro puxa outro.
Que tal traduzir um dos últimos livros do Michel Serres, citado pela autora, Darwin, Bonaparte et le Samaritain? Me pareceu uma continuação do Contrato Natural. Parece muito muito muito bom. Vamos? Sou candidata.
Grande abraço, e um bom feriado nesse Carnaval fora de hora.
Milena
Milena Piraccini Duchiade
Tradutora e Intérprete Francês–Português
Traductrice et Interprète Portugais–Français”
Com o lançamento, passou a participar de todos os debates e encontros sobre o livro. Tornara-se, afinal, uma especialista no tema.
(No fim desse mesmo ano, 2022, sua mãe morreu de causas naturais aos 95 anos.)
O trabalho seguinte de Milena na editora foi a tradução de um segundo livro de Vinciane Despret, Habitar como pássaro.
“Agradeço a confiança pela escolha de meu nome para traduzir um novo livro de Vinciane Despret. Aceito com prazer esta tarefa. (...) já comecei minha pesquisa em ornitologia brasileira.”
A experiência de traduzir mais uma vez Despret fascinou Milena, que entregou a tradução acompanhada de um texto em que ponderava suas escolhas:
“Tenho a alegria de enviar minha tradução do Habitar como pássaro (ou será Viver como pássaro?) da Vinciane Despret.
Novamente, teremos uma polêmica sobre qual seria o melhor título, que prefiro deixar ao encargo de vocês.
Na minha opinião, considerando o rigor da autora, que frisa o tempo inteiro o fato de estar interessada em examinar como as aves ocupam o espaço, seria melhor escolher ‘habitar’, mas talvez não seja a melhor opção ‘mercadológica’.
O texto estava pronto há cerca de um mês, mas minha ideia de fazer um glossário das aves citadas deu muito mais trabalho do que eu esperava.
Em compensação, acho que aliviou o texto. Penso inclusive que seria possível retirar todas as notas de rodapé que indicam ‘Ver glossário’, mas resolvi deixá-las, pois é possível que prefiram inseri-las novamente no corpo do texto.
Mais uma vez, fiquei fascinada com o que aprendi.
Acho que todas as pessoas que alguma vez se interessaram em observar os pássaros vão gostar muito do livro, mas o público potencial é bem mais amplo.
Espero que apreciem meu trabalho.
Grande abraço,
Milena”
Pouco tempo depois, novas mensagens nos avisavam de internações e procedimentos médicos. Milena se preocupava com a possibilidade de precisarmos esclarecer dúvidas sobre o trabalho. Mas não havia com o que se preocupar, de fato.
Algum tempo depois, em um e-mail, ela informava sobre o seu estado de saúde:
“Cara Ana Cecília,
Boa noite.
Não sei se você encontra-se no Brasil ou na França, mas espero que esteja bem.
Preciso lhe informar que estou gravemente doente.
Descobri uma neoplasia gástrica em outubro 23, há exatamente um ano. Operei, fiz seis meses de quimioterapia, depois mais quimioterapia, etc e tal. Mesmo assim, meu estado tem piorado nas últimas semanas.
Caso sejam necessárias ainda algumas alterações depois da revisão, acredito que dificilmente poderei acompanhar essa etapa.
Posso sugerir que meu filho André Duchiade assuma essa tarefa. É jornalista e possui um excelente domínio da língua portuguesa.
O endereço eletrônico dele é (...).
Agradeço as oportunidades que a Bazar me ofereceu, e tenho muito orgulho de nosso trabalho.
Desejo sucesso e vida longa à Bazar do Tempo.
Forte abraço,
Milena”
Após ler a mensagem, nos falamos, nesse mesmo dia, por WhatsApp. Busquei encorajá-la e lhe disse do privilégio que era contar com a sua parceria, e que logo teríamos a data do lançamento de Habitar um pássaro.
“Obrigada por suas gentis palavras.
Espero que ainda esteja aqui na época do lançamento, não tenho certeza.
Tenho pouco tempo pela frente, infelizmente.
Acredito que não tenha mais condições de aceitar novos trabalhos, também fico triste.
As traduções me trouxeram muitas alegrias.
Grande abraço.”
Nossas conversas seguiram até novembro de 2024. Milena mantinha-se interessada pelos lançamentos da editora e queria ler tudo. Pediu alguns títulos, insistindo em pagar, o que não permitíamos, claro.
Ela teve o tempo e o cuidado de escrever uma mensagem com a gentileza e o entusiasmo que lhe eram inerentes, alegrando e comovendo todas nós.
“Boa tarde, Ana Cecília.
Estive internada desde sexta-feira, só voltei para casa hoje.
Um pacote da Bazar estava me esperando...
Que bela surpresa!
O Bestiário Brasileiro é belíssimo, um primoroso trabalho de edição, pesquisa, ilustração. Meus muitos parabéns! Há muito tempo não via uma obra tão caprichada.
Espero que receba o merecido reconhecimento dos leitores e da crítica especializada.
Forte abraço da admiradora
Milena”
Milena Piraccini Duchiade morreu em 29 de dezembro de 2024, aos 70 anos.
Mas a sua história com os livros permanece em curso. Em 2026, publicaremos Habitar como pássaro, que terá o título da maneira como ela o pensou.
Para homenageá-la nessa Quinzena das Tradutoras da Bazar do Tempo, publicamos a seguir um pequeno extrato inicial do livro. Tão simbólico que seja esse o tema, os pássaros, evocando uma imagem que queremos reter de Milena, em um voo de plena luz.
Só temos a agradecer a Milena Duchiade, pelo exemplo de apuro com o trabalho da tradução, pelo respeito ao ofício, pela valorização do conhecimento e pela parceria amorosa com os livros e com a editora. Quem trabalha com livros desfruta da perenidade que eles – somente eles – podem proporcionar.
Agradeço a André e Joana, filhos de Milena, pela autorização para publicar trechos dessa nossa comunicação.
Ana Cecilia Impellizieri Martins é fundadora e diretora editorial da Bazar do Tempo. Formada em jornalismo pela PUC-Rio, mestre em História Social da Cultura e doutora em Literatura pela mesma instituição. É autora de O homem que aprendeu o Brasil – A vida de Paulo Rónai (Todavia, 2020), entre outros livros.
Habitar como pássaro
Vinciane Despret
Tradução de Milena Duchiade
PRIMEIRO ACORDE
CONTRAPONTO
Há bem mais coisas entre o céu e a terra (esse é aliás o lugar dos pássaros) do que nossa filosofia costuma facilmente explicar.
ÉTIENNE SOURIAU
Tratou-se primeiro de um melro. A janela de meu quarto tinha permanecido aberta, pela primeira vez depois de meses, como um sinal de vitória sobre o inverno. Seu canto me despertou de madrugada. Ele cantava com todo seu coração, com todas as suas forças, com todo o seu talento de melro. Outro melro lhe respondeu um pouco mais longe, certamente a partir de uma chaminé das redondezas. Não consegui pegar no sono novamente. Esse melro cantava, diria o filósofo Étienne Souriau, com o entusiasmo de seu corpo, como podem fazer os animais totalmente envolvidos pelo jogo e pelas simulações do faz-de-conta. Mas não foi esse entusiasmo que me manteve acordada, nem aquilo que um biólogo resmungão poderia ter chamado de ruidoso sucesso da evolução. Foi a atenção sustentada desse melro, empenhado em fazer variar cada série de notas. Fui capturada, a partir do segundo ou do terceiro gorjeio, por algo que se tornou um romance audiofônico, cujos episódios melódicos sucessivos eu aguardava por meio de um “e agora?” mudo. Cada sequência diferia da anterior, cada uma inventada sob a forma de um contraponto inédito.
A partir desse dia, minha janela permaneceu aberta todas as noites. A cada insônia depois dessa primeira manhã, eu reencontrei a mesma alegria, a mesma surpresa, a mesma espera que me impedia de retomar (ou mesmo de desejar retomar) o sono. O pássaro cantava. Mas nunca um canto me pareceu, ao mesmo tempo, tão próximo da palavra. São frases, podemos reconhecê-las, elas agarram meus ouvidos exatamente ali, onde tocam as palavras da linguagem; ao mesmo tempo, nunca canto algum terá sido tão distante, nesse esforço mantido pela exigência de uma não-repetição. É uma fala, sob tensão de beleza, e cada palavra importa. O silêncio retinha seu fôlego, eu o senti tremer para afinar-se ao canto. Tive o sentimento mais intenso, mais evidente, que a sorte da terra inteira, ou até a existência da própria beleza, naquele momento, repousavam sobre os ombros daquele melro.
Étienne Souriau falava sobre o entusiasmo do corpo; alguns ornitólogos, me contou o compositor Bernard Fort a respeito da cotovia, mencionam a exaltação. Para esse melro, é o termo “importância” que deveria se impor. Alguma coisa importa, mais do que tudo, e nada mais importa, a não ser o fato de cantar. A importância tinha se inventado num canto de melro, ela o atravessava, o transportava, o enviava mais além, até outros, até aquele outro melro lá longe, até meu corpo tenso por ouvi-lo, até os confins onde o conduzia sua potência. E sem dúvida, o sentimento que eu tinha experimentado de um silêncio total, indubitavelmente impossível naquele ambiente urbanizado onde minha janela se abre, comprovava que essa importância havia me capturado de tal modo que apagava tudo aquilo que não era esse canto. O canto me dera o silêncio. A importância havia me tocado.
Mas talvez também esse canto tenha me comovido tanto pelo fato de eu ter lido, pouco tempo antes, o Manifesto das espécies companheiras, de Donna Haraway. Nesse belíssimo livro, a autora se refere às relações que ela estabeleceu com sua cadela, Cayenne. Ela conta como essas relações afetaram profundamente seu modo de se relacionar com outros seres ou, mais exatamente, com “seres-outros-que-importam”, como ela pôde aprender a se tornar mais presente no mundo, mais à escuta, mais curiosa e como ela espera que as histórias vividas com Cayenne possam atiçar o apetite por novos envolvimentos com outros seres que também vão importar. O que este livro de Haraway faz, e descobri sua eficácia nessa experiência, é suscitar, induzir, fazer existir, tornar desejáveis outros modos de atenção. Um convite para ficar atento a esses modos de atenção. Não para se tornar mais sensível (um balaio por demais confortável, e que pode também causar alergias), mas para aprender a, tornar-se capaz de dedicar atenção. Dedicar carrega aqui o duplo sentido: “concentrar sua atenção em” e ainda reconhecer a maneira pela qual outros seres são portadores de atenção. É um outro modo de declarar as importâncias.
O etnólogo Daniel Fabre costumava se referir à sua profissão como estando interessada naquilo que impede as pessoas de dormir. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro propõe uma definição bastante próxima da antropologia: trata-se, segundo ele, do estudo das variações de importância. Escreve ainda que “se há algo que cabe de direito à antropologia, não é a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar nosso mundo”. Acredito que boa parte dos etologistas, que observam e estudam os animais, como já haviam feito de modo tão apaixonado antes deles os naturalistas, nos propõem um projeto semelhante: compreender, multiplicar os modos de ser, isto é, “as maneiras de experimentar, de sentir, de dar sentido e atribuir importância às coisas”. Quando o etologista Marc Bekoff afirma que cada animal é uma maneira de conhecer o mundo, não está dizendo outra coisa. Claro, os cientistas não podem economizar em suas explicações, mas explicar pode assumir feitios muito distintos, pode ser recompor histórias complicadas como sendo tantas aventuras de uma vida que teima e experimenta todos os possíveis, pode ser tentar elucidar o enigma dos problemas aos quais respondem as soluções inventadas por tais ou quais animais, mas pode ser também desejar elaborar uma teoria geral multiuso à qual todos obedeçam. Em suma, há explicações que multiplicam os mundos e honram a emergência de uma infinidade de modos de ser, outras que os disciplinam e os obrigam a se lembrar de alguns princípios elementares.
O melro havia começado a cantar. Algo importava para ele e nada além disso, naquele momento, existia, senão o dever imperioso de se fazer ouvir. Estaria saudando o fim do inverno? Cantaria sua alegria de existir, de se sentir reviver? Estaria ele endereçando um canto de louvor ao cosmos? Os cientistas certamente não poderiam enunciá-lo desse modo. Mas poderiam afirmar que todas as forças cósmicas de uma primavera nascente ofereceram ao melro as primeiras condições para sua metamorfose. Pois se trata realmente de uma metamorfose. Esse melro que havia provavelmente atravessado um inverno bastante tranquilo, apesar das dificuldades, pontuado por alguns momentos de indignação sem muita convicção perante seus congêneres, tentando permanecer discreto e levar uma vida pacífica, esse melro canta agora com toda sua potência, empoleirado no lugar mais alto e mais visível que foi capaz de encontrar. E tudo aquilo que o melro pôde, ao longo dos últimos meses, experimentar, sentir, tudo o que conferia até então sentido às coisas e aos outros, se agencia agora segundo uma outra importância, imperiosa, exigente, que irá modificar completamente seu modo de ser: ele se tornou territorial.