Cláudia Lamego
O quarto do bebê, de Anabela Mota Ribeiro, tem uma inspiração explícita, que surge ao longo das páginas, mas também logo na advertência: a obra de Machado de Assis. Tal como em Esaú e Jacó, um diário é achado entre os alfarrábios de um pai psicanalista. É desse texto ficcional que a autora portuguesa constrói a história de Ester, uma mulher que tem câncer, está confinada durante a pandemia e não consegue ter filhos. Mas escreve.
A leitura parece nos levar a uma sala de espelhos, mas não aquela em que vemos somente nossas imagens, mas a da autora e a de vários personagens de sua história. Ester do Rio Arco, Ana Ester, sua afilhada, e Ester, uma mulher que joga seu filho no lixo e é processada pelo ato, o que provoca na protagonista um incômodo terrível, pois ela própria não consegue parir. Ester é escritora, está escrevendo um diário a conselho de seu psicanalista, mas está insegura:
“Esta escrita tem um artificialismo que me desagrada, uma patine de autoficção, narcisista. Tento ver-me ao espelho com boa cara. Procuro encontrar um sentido, concatenar peças esdrúxulas.”
Nesta frase, é a autora Anabela Mota Ribeiro que se confronta com a personagem que inventou para contar a sua própria história? Nas peças que ela tenta juntar, estão citações a frases, personagens e à vida do escritor que Ester (e a própria Anabela - as imagens do espelho aqui se fundem) estuda no Doutorado. “Não fiz testamento. Não tenho filhos a quem transmitir o legado da minha miséria”, escreve Ester, citando as Memórias póstumas de Brás Cubas e lamentando novamente, mas sem o explicitar, não ter tido filhos - aliás, como o próprio Machado e sua Carolina.
A história do pai, retornado da guerra colonial em Angola, e a mãe, em quem Ester se vê refletida, são evocados no diário, que é também uma forma de a narradora expiar as suas culpas: por ter convivido pouco com ele; por ter julgado a mãe pela falta de cultura formal, por seus modos “pelintras” (no sentido de maltrapilha) e por sua obsessão com limpeza e magreza. Ester vai repetir os “defeitos” da mãe e, numa das passagens mais bonitas da obra, recupera uma carta escrita sobre ela. Também compartilha conosco o desejo de escrever romances sobre ambos:
“O problema é que não sei escrever sem ser na primeira pessoa, e por isso os livros sobre o meu pai e a minha mãe serão um reflexo de quem eu sou e do modo como os vejo no meu espelho. Devo ter ficado presa na fase do espelho.”
A autora portuguesa cria também outro duplo na história de Ester: Aurora, uma mulher bem mais velha, sua amiga, que morre durante a pandemia, e, em sua imaginação, teria sido colega de turma do seu psicanalista. Ao refletir sobre a sua análise e a relação com Aurora, ela pensa a finitude, as vicissitudes do corpo, a doença que se infiltra em seu corpo, ao mesmo tempo em que o mundo está sendo infectado por um vírus. As passagens escatológicas do textos nos parecem uma regressão ao estado da infância, em que as crianças falam de cocô com naturalidade, ou a um estado materno, quando os eflúvios corporais podem ser constrangedores, mas também se tornam cotidianos e dizíveis na vida das mães.
Além de Machado, Anabela traz para o seu salão de espelhos outras referências literárias, como Susan Sontag, Sylvia Plath, Noemi Jaffe, Svetlana Aleksiévitch, Natalia Ginzburg, Tatiana Salem Levy e Adília Lopes; musicais, como Cartola, Noel Rosa, Violeta Parra e cantores de fado portugueses; cinematográficas como Bergman, Patricio Guzman e Godard. É já na dedicatória que ela também traz outra obra literária que pode traduzir tanto o seu inferno particular quanto o coletivo. A “selva oscura” da Comédia de Dante é uma metáfora para as sombras projetadas do câncer e da pandemia, na vida de uma protagonista que também estava “nel mezzo del cammin” de sua vida, preparando-se para sobreviver aos 50, em meio aos calores infernais da menopausa.
É de todos esses elementos que Anabela Mota Ribeiro extirpa a sua escrita, gesta o seu livro, se reencontra com o desejo de criar, goza com a sua pena e dá à luz, n’O quarto do bebê, uma obra que, como ela diz numa referência também a Dante e seu Paraíso, “alumia a escuridão”.
“Escrever é ser capaz de gerar. É vencer o sentimento de infertilidade, a terra gretada que medrou durante meses (fechava os olhos e via essa extensão infindável, solo pedregoso, as fissuras, imprópria para semear). É escutar-me no fundo da viagem de Dante, andar sempre à beira de um desfiladeiro.”