Marguerite Duras, o desejo de falar, e o livro sem começo, nem meio, nem fim.

Cláudia Lamego

“Na origem de A vida material está o desejo de falar — de tudo e de nada —, de preencher o vazio deixado pelo fim da escrita de Olhos azuis, cabelos pretos e pelas longas ausências de Yann Andréa, que frequentemente ‘sai para caminhar pelas colinas’”, escreve Anne Cousseau, professora de Estudos Culturais e Literatura francesa na Universidade de Lorraine, especialista na obra de Marguerite Duras.

De fato, o livro nasce de um pedido ao amigo, roteirista e cineasta francês Jérôme Beaujour para que gravem entrevistas, antes que ele deixe sua casa em Trouville, no fim do verão francês, para retornar a Paris. “Um desejo, ao que tudo indica, de se engajar na materialidade da voz, e até mesmo no ato de gravar com o gravador”, diz Cousseau, citando uma frase de Duras à documentarista Michelle Porte, que fez filmes sobre a própria Duras e Virginia Woolf, entre outros: “O que melhor substitui escrever é a ocupação material”.

As entrevistas com Beaujour estão guardadas no Institut Mémoires de l'édition contemporaine e é a partir da escuta do material que escreve Anne Cousseau, autora do livro Poétique de l’enfance chez Marguerite Duras.

No prefácio da obra, Duras escreve que A vida material é um livro que “não tem começo nem fim, ele não tem meio. Uma vez que não existe livro sem uma razão de ser, então este aqui não é um livro. Não é um diário, não é jornalismo, está liberto de acontecimentos cotidianos. Digamos que é um livro de leitura.” A autora retrabalho o “texto” das entrevistas, encurtando-os, transformando-os em fragmentos e retirando o diálogo com Beaujoir. É um texto que “se inscreve nas margens da obra narrativa”, segundo Cousseau e o termo livro, para a professora, também é inadequado para descrever essa escrita livre, que salta de um tema a outro.

“Um livro a meio caminho entre a ficção e o diário, entre o fragmento e o instante, entre a conversa e a confissão, um livro entre duas águas, entre Duras e Beaujour, entre Duras e seu tempo, sua memória, sua visão de mundo. Um livro de "escrita flutuante", cujos textos se apresentam como tantos "limiares" para penetrar um pouco no espírito de Duras. Daí esse sentimento intenso de intimidade com uma escritora e não apenas com uma obra, e essa impressão de estar, diante de todos esses fragmentos dispersos, frente a um quebra-cabeça cuja reconstrução ajudaria na resolução do enigma M. D.”, registrou o jornal Libération, em junho de 1987, quando o livro foi lançado na França.

Na obra, as leitoras vão encontrar reflexões de Duras sobre a relação com a mãe, a materialidade da vida cotidiana doméstica das mulheres, o lugar que estas ocupam no mundo, à falta de visão dos homens sobre essas mulheres e, sobretudo, sobre o que elas fazem e escrevem foram do âmbito familiar e das casas. Duras também conversa sobre os seus livros e critica, de novo, a visão reduzida e incômoda que os seus pares masculinos têm da sexualidade feminina na obra que lhe rendeu o Goncourt e a fama mundial e comercial.

Na apresentação do livro, feita especialmente para a edição brasileira, a escritora Laure Adler diz que “A vida material inaugurou uma forma de literatura. Como falar do eu e do mundo e do eu que habita este mundo sem passar por um gênero como o diário íntimo ou a autobiografia? Com este texto, Duras deu uma nova dimensão à palavra e ao que significa falar.”

Escrever, título de um de seus livros, é um tema recorrente em A vida material, que ela editou bastante a partir do material bruto de sua fala. “Ao reescrever ela teceu novamente, como Penélope, os temas que eram sua obsessão, e com isso ela inaugura um falar escrito, um sussurro, uma confissão também, que ressoa em todos nós”, afirma Adler.

Laura Adler

 

Laure Adler é autora da biografia Marguerite Duras, livro vencedor do prêmio Femina em 1998. Também escreveu uma série de livros feministas, como Les femmes qui lisent sont dangereuses [As mulheres que leem são perigosas] e Les femmes qui écrivent vivent dangereusement [As mulheres que escrevem vivem perigosamente]. Neste último, dedicou um perfil a Duras, no qual escreveu:

“A escrita de Duras era ao mesmo tempo glacial e sensual; ela unia a impassibilidade flaubertiana, o distanciamento do observador retrospectivo, ao calor da confissão e aos efeitos melodramáticos, especialmente no que se refere à paixão do coração e da carne. Ela escrevia, como dizia, para transferir seu ‘eu’ ao livro e não para apagá-lo. ‘Massacrar-se, dissipar-se, arruinar-se no nascimento do livro’ era uma das faces do processo; a outra consistia em fazer do livro um objeto-eu, no qual desaparecia tudo o que pudesse permitir distinguir, no relato, o vivido do fictício. Essa indiferenciação é também resultado de uma retranscrição sempre renovada e reinterpretada de suas memórias, uma arte que ela praticou por toda a vida.”

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