Sem Helô, ficamos muito mais sozinhos

Ana Maria Machado

Sessão da saudade – Heloisa Teixeira
Academia Brasileira de Letras, 3 de abril de 2025

Nem tenho como falar na falta que a Helô vai fazer. À nossa cultura, à Academia, ao Rio de Janeiro, à vida de todos nós. Com seu afeto, sua capacidade de detectar ao longe o que vinha brotando escondido na criação brasileira, sua antena para captar o que precisava ser gestado, sua coragem, sua solidariedade atenta e inclusiva. Mas em termos pessoais, eu sinto essa perda de uma maneira muito funda, uma amizade construída ao longo de décadas, em diferentes momentos e casas diversas. Podíamos ficar meses sem nos falar e de repente ela ligava para uma conversa comprida. Dizia: “Quero trocar ideias, posso gravar para registrar?” E levantava questões sérias para discutirmos, mesmo se às vezes não conseguíamos concluir nada na hora. Mas o diálogo provocador nos iluminava.

Volta e meia ela me dava toques preciosos. Como ao terminar de ler meu romance Tropical sol da liberdade, por exemplo, me deu uma força enorme ao destacar que sempre negara a existência de uma escrita explicitamente feminina, reconhecendo apenas uma estratégia feminina da escrita, mas meu livro a fizera mudar de ideia – e fez questão de deixar isso por escrito mais tarde, na orelha de uma nova edição.

Na pandemia, quando lhe revelei que eu estava empacada sem escrever e só tinha vontade de explorar lembranças, mas me recusava a fica olhando para meu próprio umbigo, Helô foi incisiva. “Ana, para nós isso não existe. Nosso umbigo é coletivo.”  Sem esse empurrãozinho eu não teria escrito meu livro Rastros e riscos, em primeira pessoa e mergulhando na memória. Fiz questão de registrar isso no texto.

Conseguíamos compartilhar vivências únicas, com uma cumplicidade e confiança que agora estão perdidas para sempre ­— de questões afetivas e existenciais a duvidas profissionais, de confissões do  intenso carinho familiar que nos sustenta à irritação com cobranças pela imagem pública que nos aprisiona. Como derramamentos de amor e orgulho por noras, filhos e netos sem medo da corujice explÍcita. Ou a necessidade de ocultar a irritação com quem quer usar nossa imagem ou bancar papagaio de pirata. Ou confissões de não querer mais ler nada que seja por obrigação de estar atualizada. Ou reconhecimento de não ter lido obra alguma de uma escritora fundamental que, teoricamente, teríamos o dever de navegar com intimidade...

Os que convivíamos de perto com Helô não ficamos apenas mais pobres intelectualmente sem ela, como todo mundo em volta reconhece que o país ficou. Nós ficamos muito mais sozinhos, e isso dói demais.

Ana Maria Machado é escritora e integrante da Academia Brasileira de Letras.

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