“Lírica como crítica, erudita como poeta”: a experiência doce e escorregadia de ler Anne Carson

Cláudia Lamego

Ler Anne Carson parece, a uma primeira vista, um desafio. A começar pela definição que ela mesmo faz de suas obras. O que será, afinal, “Um ensaio ficcional em 29 tangos”, como ela apresenta A beleza do marido? Como ler um romance em versos que recria o mito grego de Gerião, um monstro vermelho a quem Héracles teve de exterminar para assim cumprir um de seus doze trabalhos?

Um detalhe é que a autora não gosta que seus livros tragam textos complementares como chaves de leitura. Em suas raras entrevistas, Anne Carson costuma devolver ao jornalista as suas próprias perguntas. Enigmática, ela formula frases curtas e a imprensa que lute! Vejam esse trecho de entrevista ao The Guardian:

“Você acha que os poetas escolhem ser poetas — ou é a poesia que os escolhe?

Eu preferia desenhar, mas não era muito boa nisso. Comecei a colocar títulos nos desenhos e, com o tempo, aquilo acabou se estendendo até virar escrita. Mas, no geral, desenhar não se relaciona muito com escrever; são formas alternativas de usar a mente, que se renovam mutuamente.”

Entenderam? Para entrevistar a autora, é preciso também se livrar de estereótipos, deixar a mente aberta para o inusitado. Talvez esteja aí uma chave: não ter medo de mergulhar nas águas de Anne Carson talvez seja a primeira coisa a se fazer. Afinal, é nessa mesma entrevista que ela diz: “Me sinto em casa debaixo d’água”. ¹

Então, como começar a ler a autora? Um bom começo é justamente Eros, o doce-amargo. Ao passear pelas suas reflexões sobre o desejo e incursões pela obra de autores clássicos e contemporâneos, descobrimos um texto que aguça nosso desejo de conhecê-la mais. O melhor é que a sensação não se assemelha ao desejo como ela o define, porque não tem a parte amarga. Mas, provoca algo que ela também diz sobre nossa vontade de agarrar o amor: com sua obra, isso é impossível.

Ler artigos, resenhas e teses sobre a sua obra também é um bom caminho para se ambientar à sua arte (Carson também desenha e pinta). Julia Raiz, além de tradutora, também é poeta e escreveu a sua tese de Doutorado ² sobre a poeta canadense.

Se é um desafio doce ler Anne Carson, como será o gosto de mediar, pela primeira vez, um encontro sobre a sua obra? Nos vemos na próxima terça, dia 19, e eu terei (ou não) uma resposta.

Outra poeta e também tradutora, a estadunidense A. E. Stallings, escreveu um excelente ensaio sobre Carson, em que a definiu “lírica como crítica, erudita como poeta” e afirmou: “No cerne de sua obra está a ideia de que escrever é uma forma de ter o bolo e comê-lo também. Uma afirmação negativa contém a coisa positiva que ela nega”. ³


¹ Título do ensaio da poeta e tradutora Julia Raiz no Suplemento Pernambuco.
² A tese de Julia Raiz pode ser acessada aqui.
³ O texto completo pode ser lido aqui, em inglês.

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