Marguerite Duras e o romance de nossas vidas

Isabela Bosi 

Em 1984, Marguerite Duras concedeu uma entrevista ao jornalista Bernard Pivot, no programa Apostrophes, do canal de televisão Antenne 2, na França. Nela, Duras afirma que, apesar do que costumamos pensar, a vida não se desenrola como uma estrada reta, um começo rumo a um fim, como uma mera cronologia. Para ela, um acontecimento vivido só é, de fato, percebido muito tempo depois, a partir da memória. É a memória que nos ajuda a apreender algo que vivemos. Diante disso, ela acredita que já não se pode falar que existe a história de uma vida, mas sim o romance de uma vida, de sua vida, de nossas vidas. Não há, para Duras, nada de verdadeiro no real. É pela memória que inventamos a vida que vivemos. 

Esse é um pensamento que, de muitos modos, evoca a força e a potência do romance, ou seja, da escrita, da literatura, da memória, da fabulação. Ele evoca ainda, e sintetiza, de certo modo, a própria obra de Duras e o seu gesto de escrita, que rompe com a ideia de  linearidade e de história propriamente dita, deixando que outras temporalidades conduzam toda a criação, dando a ver, em muitos momentos, o que há de verdadeiro no irreal e de falso no real. 

Para Duras, a vida ganha outros sentidos na escrita ao mesmo tempo em que a escrita confere outros sentidos à vida. Trata-se de uma via de mão dupla, em que se percebe que não existe uma história da vida, mas múltiplas possibilidades de se recriar e de inventar a vida, através da memória e da linguagem. Essa é, talvez, uma das maiores potências do trabalho de Marguerite Duras: a constante recriação da própria vida, das próprias memórias, da memória de seu tempo, o que se dá na recusa de toda narrativa do eu, do íntimo, do pessoal. Ao falar de si, Duras assume, a todo instante, o gesto político de não entrar em uma interioridade, em uma intimidade, mas de apontar para o fora, para o outro, para a multiplicidade de eus que a habita e que a envolve. Falar de si, com Duras, é sempre evocar uma exterioridade.

É com essa lente, me parece, que ela nos convida a ler seus textos e a criarmos, nos vazios que ela nos dá, os caminhos da narrativa. É assim em A Dor (1985), texto que Duras escreve inicialmente em seus diários de guerra, mas que se reconfigura em livro quarenta anos depois. Essa é uma escrita que se apresenta como uma espécie de diário, de relato pessoal, mas que, ao mesmo tempo, destrói a ideia habitual de diário, com entrecruzamentos, cortes, delírios anacrônicos e a convocação de outras dores, de outras mulheres, de outras memórias. É assim também em Aurélia Steiner (1979), três textos curtos e homônimos em que Duras cria a narrativa de uma só Aurélia que habita diferentes países e diferentes tempos. É assim ainda, podemos dizer, em todos os seus livros, filmes e peças de teatro, especialmente a partir de Uma barragem contra o Pacífico, livro de 1950, publicado logo depois de Duras ter sido expulsa do Partido Comunista Francês. É quando ela passa a assumir, cada vez mais, uma escrita da recusa e da destruição da linguagem, da linearidade, da identidade, da unidade, do didatismo – ideias que ela rejeita, profundamente.

Reforço, assim, que a leitura de seus textos é um convite intencional para adentrarmos essa multiplicidade de memórias, de tempos, de sujeitos, de vozes, de guerras, de amores, de dores. Um chamado para que possamos entrar em contato e perceber a multiplicidade que povoa e dá corpo à sua obra – e ao romance de sua vida, que é também o romance de nossas vidas.  

  • Texto publicado no blog da Bazar do Tempo em 4 de abril de 2025, dia do aniversário de Marguerite Duras (1914-1996).


Isabela Bosi é escritora e doutora em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP (CAPES), com tese sobre os textos de guerra de Marguerite Duras. Realizou período sanduíche na Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3, com pesquisa no Institut Mémoires de l'édition contemporaine, onde estão os manuscritos de Duras. Ao longo dos últimos anos, ministrou diversos cursos sobre a obra de Duras em espaços como Casa da Rosas (SP) e A Capivara Instituto Cultural (SP). É idealizadora e coordenadora do Clube de Leitura: Marguerite Duras. 

É autora dos livros "É perigoso deixar as mãos livres" (Círculo de Poemas, 2025), "Elida Tessler: alguns envios de tempos e memórias" (UFMG, 2023), "Quase" (Nadifúndio, 2019; adaptado para o teatro em 2023, pelo Quase Um Coletivo de São Paulo), "Sobre viver" (Nadifúndio, 2019; traduzido e publicado na Argentina e no Peru) e “Bar do Anísio: casa de liberdades” (UFC, 2013; com 2ª edição no prelo).

 

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