Escritoras famintas: Victoria Ocampo e Virginia Woolf - Trecho da correspondência das autoras

New Clarges Hotel 
Halfmoon Street, 
Piccadilly Londres W. 1
Esta quarta-feira (1934) 3/4


Querida Virginia,

Acredito que permanecerei em Londres até a próxima semana, pois acabei de receber uma carta de Madri contando que me esperam desde o começo de novembro. Atente que preciso publicar um livro lá ainda este mês.5 Mas, como não conseguirei voltar a Londres por enquanto, é melhor que eu fique mais alguns dias. O quanto for possível.

Eu sei bem que há muitas pessoas interessantes com quem conversar em Londres. É assim também em Paris. Mas pouquíssimas (pelo menos lá, onde conheço quase todo mundo que escre- ve e que vale a pena conhecer) são interessantes para mim da forma como você, ou André Malraux, o são. Digo, de uma maneira vital!

Valéry é um grande amigo meu. Assim como Drieu (ainda mais). Anna de Noailles também. Fargue é muito divertido. Gi- raudoux é encantador. Morand é muito agradável etc. etc. Porém, não me oferecem nada de vital.6 Eu diria que é isso que procuro.7 Por favor, Virginia, não pense, nem por um instante, que quero te adular. Detesto esse tipo de coisa.8 Ontem, quando você falou de K. Mansfield & eu disse que não deveria se comparar com ela (ou outras, pelo menos como as conheço),9 é porque, embora eu consiga ver perfeitamente o encanto delas, significam muito pouco para mim. Eu não gosto de comer & nem de ser alimentada. Sou uma pessoa voraz. E acredito que ter fome é tudo.10 Não tenho vergonha de ser faminta. Você não acha que amor é a nossa fome de amar? (Estou falando de amor em maiúsculo.)

Quero dizer que nossa fome é um elemento muito impor- tante. Que as coisas só existem de verdade para nós quando e porque temos fome delas e na medida em que essa fome é imensa. O segredo de um Picasso é que ele tem fome de pintura.11 É por isso que ele diz: “eu não procuro, eu acho”. É a sua fome que fala. O que me assusta na Europa (França, Espanha, Itália) é uma espécie de perda do apetite dos seres. Lá em casa, temos apetite, mas ainda nos falta o alimento! E viemos pra cá... famintas.12 Meu Deus! Como eu teria coisas para te dizer e para te perguntar.13

Me avise quando estiver livre. Se você quiser jantar ou almoçar com o seu marido aqui, qualquer dia, eu ficarei encantada.
Mas, se o assunto te aborrecer, não falaremos mais disso.
Do que eu mais gosto é conversar com você ao pé do fogo.

Victoria (como a antiga Rainha) 

P.S.: Quando eu disse que você poderia me ajudar, quis dizer que, ao ser você mesma, me permitiria sentir a sua “présence réelle” [“presença real”] (como diriam as pessoas católicas). Você me ajudou imensamente. Esse é o tipo de que apoio que preciso.


 

Sexta-feira [7 de dezembro, 1934]
Tavistock Sq., no 52, [W.C.1

 

Querida Victoria, 

Não, já é demais — como a antiga rainha costumava dizer: me refiro às suas flores. Por favor, não faça isso de novo: por favor, aceite meu (o que ela teria dito) profundo agradecimento; mas, de agora em diante, não me dê nada. Sou uma mulher sem graça que prefere, depois de um presente (e você me deu orquídeas e rosas), não receber outros. Isso que dá ter sangue do clero esco- cês — uma raça detestável. Como sempre, estou escrevendo em um redemoinho. O bebê da faxineira está com sarampo. Tenho que preparar o jantar na nossa casa de campo. Venha na terça, às 20h. Mesmo que o jovem apareça e fique entusiasmado em conhecê-la, pois morou em seu país, sozinho no campo — se ele aparecer e se apaixonar por você, ainda assim conseguiremos conversar em particular. E gosto mais do final da tarde, aqui nun- ca estou sozinha na hora do chá. Então, às 20h na terça-feira: nada de traje formal.

Desculpe o garrancho.
Estou levando seu manuscrito para o campo. 

  Sua, V. W. 

 


3 Esta carta, de 5 de dezembro de 1934, está escrita alternando o francês e o inglês, como se pode ver no fac-símile do manuscrito original (cf. p. 38-42), Victoria Ocampo a re- tomou no final dos anos 1970: a traduziu para o espanhol, a editou, a uniu com a carta de 11 de dezembro de 1934 (cf. p. 46) e assim produziu um novo texto datilografado que incluímos no final desta correspondência (cf. p. 88-90). (N.E.).
4 Na edição brasileira, traduzimos a versão que está em inglês e francês, tentando emular esse jogo de línguas das trocas entre as duas. (N.T.BR)

5 Na versão posterior, Ocampo acrescenta, entre colchetes: Revista de Occidente, Primeiro volume de TESTIMONIOS [TESTEMUNhOS]. (N.E.)
6 Referência aos escritores franceses Paul Valéry (1871-1945), Pierre Eugène Drieu La Rochelle (1893-1945), Anna de Noilles (1876-1933), Léon-Paul Fargue (1876-1947), Jean Giraudoux (1882-1944) e Paul Morand (1888-1976). (N.E.BR)
7 Na versão posterior, Ocampo recorta este parágrafo, omitindo grande parte dos nomes próprios e sintetizando as ideias com a frase: “Quero dizer, de uma maneira vital. Pou- cas me entregam esse elemento, que me é tão necessário.” (N.E.)
8 Na versão posterior, Ocampo suprime esta frase. (N.E.)
9 Este parênteses está riscado à mão na versão posterior. (N.E.)
10 Na versão posterior, Ocampo suprime esta frase. (N.E.)
11 Ocampo introduz aqui uma nota e, na margem superior, acrescenta: “Uma fome de
ogro!”. (N.T.)
12 Na versão posterior, Ocampo prefere traduzir o adjetivo affamés por “famélicos”. (N. E.)
13 Até aqui chega o texto que Ocampo retoma a versão dos anos 1970; o restante da carta é omitido, para passar, depois de uma separação gráfica, para a carta de 11 de dezembro de 1934, sem esclarecer que se trata de dois textos com datas diferentes. (N.E.)

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