Entre a doçura e o medo

O encontro entre duas personagens, de um sobrado no interior de Minas a um casebre no centro de Nápoles

Isabela Discacciati


Quando eu era uma criança pequena em Barbacena - e esse para mim nunca foi um simples bordão - na rua de cima da minha casa, em um sobrado antigo, vivia uma figura escandalosa. Da varanda inclinada, ela dava suas risadas, provocava os rapazes magros do posto de gasolina da frente, às vezes levantava sua voz, medindo forças com as buzinas e a freada dos ônibus na rua movimentada. A esquina onde essa figura morava aparece em um quadro bonito de Emeric Marcier, o genial pintor romeno que viveu em Barbacena nos anos 1940. Acostumado à cinzenta Bucareste e a uma Europa ameaçada pelas bombas, Marcier exagerava nas cores, transformando paisagens anônimas em lugares singulares. Quando tenho saudades da infância e tudo me parece nebuloso recorro aos quadros de Marcier. 

Eu entrei naquele sobrado na ocasião em que meus pais resolveram comprar um piano para que eu pudesse me exercitar. O casarão era muito bonito, mas velho, datado. A escadaria se abria em um salão iluminado por um vitral amarelo decorado com um pássaro preto. A luz passava no ponto exato do bico do pássaro, de onde saía o desenho de uma nota musical. Não ficamos com o piano, não me lembro bem por que. Talvez fosse velho demais em relação ao dinheiro que eles pediam. À época, os três irmãos estavam se desfazendo dos móveis, prataria, quadros e vasos de cristal da velha mãe recém-falecida. O piano era um dos desapegos. Depois que a mãe morreu, muita coisa mudou naquele sobrado e um de seus moradores começou sua metamorfose.

Tempos depois, comecei a vê-lo rondando a pastelaria que ficava bem debaixo da sua varanda. Usava shorts e sapatos de salto alto com tiras que contornavam as pernas musculosas depiladas. No inverno, se cobria com um casaco de pele de outros tempos, mas deixava sempre as pernas expostas. Tinha vários modelos de bolsas, provavelmente compradas nos bazares da igreja de São Geraldo, onde vendiam roupas usadas a preço baixo, as famosas “pechinchas”. 

Embora alguns de seus trejeitos fossem evidentes - como o mindinho erguido enquanto segurava o copo de café ou cachaça - não era um personagem caricato. A voz alta destilava ataques contra quem ousasse olhar para ela de forma torta, ou à revelia. De maneira aleatória, escolhia algum operário ou trabalhador que se empoleirava no ponto de ônibus, e lançava-lhe insultos incompreensíveis e violentos. Algumas vezes a polícia aparecia e ela sumia por uns tempos. Me impressionava também sua idade avançada, para mim, aquilo a deixava mais elegante e muito respeitável.

Ao lado do sobrado ficava uma locadora de fitas em VHS, um tipo de comércio muito popular naquela época. Quando eu ia com meu pai devolver as fitas, vivia um fibrilante estado de tensão. Meu medo dividia espaço com o desejo. Pedia a Deus ou a alguma força do universo que ela não implicasse com a gente. Abaixava o olhar, mas me angustiava por dentro, porque tudo o que eu mais queria era examinar, nos mínimos detalhes, aquela figura meio macho, meio fêmea, que me intrigava tanto.

Quando voltava para casa, um ambiente seguro, finalmente podia abrir os olhos sem receios e me encantar com o show das transformistas no programa Sílvio Santos. Era fascinante perceber como a ordem podia ser invertida, como os adereços coloridos, macios e brilhantes podiam transformar um corpo de homem em algo extraordinariamente belo e plural. Me divertia, me iluminava quando no Carnaval deitávamos com minha mãe na cama para assistir ao baile do Gala Gay. Assim, meus primeiros contatos com o universo transgênero - palavra que àquela época não existia - foram marcados por uma mistura de medo e maravilhamento.

Foi exatamente de Ricardo que me lembrei - nunca soube seu nome feminino - quando entrei na casa de Tarantina Taran, no bairro espanhol, em Nápoles. Tarantina é uma figura célebre na cidade e é considerada o último femminiello de Nápoles, nome que designa um personagem da tradição popular que transita entre dois pólos que não correspondem somente ao feminino e ao masculino. Ele tem muito mais a ver com dualidades como o sacro e o profano, a terra e o céu.

Conheci Tarantina durante as pesquisas para o livro Para além das margens: a Itália de Elena Ferrante, publicado pela editora Bazar do Tempo. Sua figura se encaixava no perfil de um dos personagens mais interessantes da tetralogia de Ferrante, Alfonso Carracci. No livro, o amigo de infância das protagonistas sonha em ser o espelho de Lila, e passa por uma metamorfose física para se parecer com a amiga. Tarantina me remetia também ao mito da fundação da cidade de Nápoles, simbolizado pela antiga concepção de sereia, metade mulher, metade pássaro, um ser híbrido, misterioso e potente.

Na tradição popular de Nápoles acredita-se que os femminielli, que são mulheres trans, simbolizam figuras que conectam dois mundos. Em alguns contextos, elas representam o cuidado, o afeto, e por isso sempre foram acolhidas na comunidade, frequentemente desempenhando serviços domésticos, cuidando da casa, dos idosos e das crianças. Mas eles também têm suas expressões transgressoras e até bizarras. No filme O segredo de Nápoles (2017), do diretor Ferzan Özpetek, uma das cenas mostra um antigo ritual realizado pelos femminielli chamado “figliata”. É a encenação teatral do parto de um bebê gerado por um casal de femminielli. Aquele que representa a mãe simula as dores do parto e da à luz um bebê de sexo masculino, que pode ser um boneco ou uma criança da comunidade. Existem várias interpretações para o ritual, mas é interessante pensar na interação entre o masculino e o feminino em um evento tão significativo quanto ao parto. 

Meu encontro com Taran não foi programado. No bairro espanhol, onde mora, ela é uma celebridade, mas não gosta de dar entrevistas e vive de modo simples, se apresentando em teatros lotados nos finais de semana. Por uma agradável surpresa do acaso despenquei na frente de sua casa no dia do seu 86º aniversário e fui recebida como uma verdadeira convidada de uma celebração. 

A casinha de Tarantina é um vascio, a expressão quer dizer baixo, uma pequena habitação localizada no térreo dos edifícios de bairros populares, com dois ou três cômodos e sua entrada é imediatamente na “cara” da rua. Quem passa por ali e olha para dentro acessa facilmente o mundo dos moradores. No vascio de Taran não tem prataria, louça, vaso de cristal. O ambiente é decorado com quadros simples, fotografias do passado e alguns objetos que dão uma cara de casa de vó. Ela é uma senhora amável, gentil, que me conta sobre sua vida esplêndida e assombrosa. Enquanto ela fala, pega nas minhas mãos, me serve um café, sorri praticamente por todo o tempo que permaneço em sua casa, no início sentada em uma cadeira, e depois ao seu lado, em cima de sua cama. 

O final de tarde que passo com Tarantina rende um dos meus capítulos preferidos do livro. Com sua ajuda, Nápoles, a cidade macho-fêmea, foi ganhando os contornos que eu esperava encontrar na minha pesquisa. Nosso encontro me fez lembrar de Ricardo, acho que ele já morreu. Nunca mais o vi nem tive notícias. Quando vou a Barbacena, passo em frente ao sobrado, que foi pintado de um rosa bem claro, ele já não é tão imponente como me parecia no passado. Ainda assim, muito diferente de um vascio napolitano. Penso em Taran pegando nas minhas mãos e vejo Ricardo, doce como ele nunca foi.


Isabela Discacciati nasceu em Barbacena, Minas Gerais, em 1981. É formada em jornalismo e relações públicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e especialista em cultura italiana pela Universidade Ca’Foscari de Veneza. Produz conteúdo sobre a obra de Elena Ferrante e literatura italiana no perfil do Instagram @clubeferrante. Atualmente, mora em Treviso, Itália.

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