Sobre tudo que se perde e do tantinho que se ganha na tradução

Emanuela Siqueira

Foi um final de novembro chuvoso, quente e úmido em Paraty, durante a 21ª FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Enquanto outras tradutoras e eu saltávamos pedras e poças d’água, procurando um lugar para almoçar, encontramos a tradutora e poeta argentina Laura Wittner ostentando um adesivo do coletivo brasileiro Quem Traduziu. Ela aponta para o círculo na blusa, mostrando que é igual aos que estão em nossas roupas, diz algo do tipo “eu também”. Abrimos sorrisos largos e arriscamos, ali mesmo, uma conversa meio emocionada em portunhol. Eu sinto uma vontade enorme de dizer algo cafona do tipo “pois é, Laura, aqui também se vive e se traduz”.

Há poucos meses dessa cena eu havia ganhado a edição argentina de Se vive y se traduce (Editorial Entropia, 2021), de uma amiga tradutora do espanhol. Antes mesmo de ler o livro, fiquei obcecada pela construção reflexiva “se” do título; comento com Nylcéa Pedra, que é quem me deu o livro, e ela me manda uma mensagem animada contando que esse uso “é uma das coisas mais lindas do espanhol”. De fato, exploramos pouco, na escrita, o pronome oblíquo átono antes do verbo no português brasileiro porque a norma padrão condena. Pensar que “o agente [da frase] executa e sofre a ação” (diz uma gramática), é uma construção de cena emblemática, e belíssima, sobre a prática tradutória. 

Penso que a minha vontade cafona de dizer uma frase, com o pronome oblíquo átono, é de deixar uma nota de rodapé enquanto leitora de Laura Wittner em espanhol. Que ela executa e sofre a ação enquanto tradutora é algo nítido durante a leitura de seus escritos, seja a poesia ou os aforismos ensaiados. Porém, quando traduzida para o português brasileiro, Laura expande algo que Ezequiel Zaidenwerg, também tradutor e poeta argentino, diz, mais ou menos assim, na quarta capa da edição em espanhol: não há teorias da tradução que não surjam diretamente da prática.

Não é difícil elaborar sobre isso lendo as duas primeiras traduções brasileiras: Tradução da Estrada (Círculo de Poemas) e Viver e Traduzir (Bazar do Tempo), além de promoverem o diálogo entre si, foram traduzidos, cada um, por quatro mãos de tradutoras. E cada dupla propôs projetos de tradução particulares que levam a sério sofrer e executar a ação. Os dois projetos de edição reverberam um dos fragmentos aforísticos de Wittner: “Traduzir é pensar na gente”. Esse “gente” emblemático no português brasileiro dá conta de uma coletividade sem gênero, aos moldes que sonhava Virginia Woolf, com quem aprendi a ser tradutora. É um “gente” que aproxima as pessoas que escrevem, as que traduzem e as que leem.

Não sei se a tradutora vem antes da poeta. Penso muito em Ana Cristina Cesar e a sua obsessão com o bliss/êxtase – que abunda em seus poemas enquanto traduz Katherine Mansfield no final da década de 1970 –, e de como Laura Wittner começou a estudar inglês aos 15, um ano antes da morte de Ana. Ambas traduziram Mansfield e eu só fiz essa conexão quando li a tradução de Paloma Vidal e Maria Cecilia Brandi em Viver e Traduzir. A reflexividade do “se traduz” está na ação das duas tradutoras do começo ao fim do texto. Além da Nota das Tradutoras – onde elaboram sobre esse trabalho em par –, que abre o livro, a força dialógica da tradução está nas notas de rodapé, que não existem no texto fonte. São mais de 30 entradas de “N.T” que fazem de Viver e Traduzir uma conversa tão cotidiana quanto os dramas vividos pela autora enquanto traduzia e observava a vida acontecer, incluindo a morte do pai, para quem dedica o livro.

Nada é simples demais para estar nas anotações de Laura Wittner, justamente o que comove qualquer tipo de tradutora, por isso é absolutamente compreensível – quase uma faísca –, ler uma nota como a 6ª, que começa com um “Concordamos!”. As tradutoras estão presentes, mesmo quando uma parcela do mercado editorial brasileiro – aqui, incluo jornalistas e influencers que ignoram quem traduziu –, suprime seus nomes das capas dos livros, ou quando o valor da lauda traduzida é, ainda, muito abaixo do piso previsto. Desde um simples desabafo sobre o uso de pronomes; o quão efetivo pode ser o uso do ampersand (&); traduções e trechos de outras pessoas que pensam o ato tradutório e, até mesmo, um poema seu (“esse fui eu que escrevi, não estou citando”). Tudo é parte dessa vida imersa na tradução e tudo pode ferver em um caldo que alimenta e dá energia para outras configurações de teoria, principalmente aquelas que pensam o movimento triangular e reflexivo entre escrita, tradução e leitura.

Chego aqui achando que sim, a poeta vem depois da tradutora, pelo menos quando se trata de A Tradução da Estrada, poemas publicados um pouco antes de Viver e Traduzir. Aqui contamos com a tradução deslizante de Estela Rosa e Luciana di Leone, que conseguem tornar poemas, que moram na privacidade de uma poeta que traduz, em cenas que soam bem na nossa língua, misturando a memória sintática das três envolvidas. Elas transformam a ruta de Wittner em uma estrada que conecta lugares, onde se pode ir e voltar. Um dos destaques é “Bom Dia, Kenneth” (que também está em Traduzir e Viver, figurando outro cenário), em que a poeta traduz a si enquanto tradutora de poemas encomendados, que nunca foram publicados mas que fizeram ela se metamorfosear em poeta.

“Faço laços de amor enquanto traduzo” diz Laura, leitora de Anne Carson, que responde, de forma anacrônica, com “quem ama quer o que não tem”, em Eros: o doce-amargo (tradução de Julia Raiz, Bazar do Tempo). Essa resposta vem imediatamente nas notas de rodapé mentais que faço enquanto leio Laura Wittner nas vozes de Estela, Ciça, Paloma e Luciana, assim mesmo, misturadas porque elas me fazem amar algo escrito em uma língua que quanto mais se parece com a minha, mais se afasta. Sigo no ato reflexivo de ler não apenas como tradutora que sou, mas ainda mais enquanto leitora que pode se traduzir, fazendo do “tantinho” um “tudo”.


Emanuela Siqueira é graduada em Letras/Inglês e doutoranda em estudos literários, na Universidade Federal do Paraná, com pesquisa sobre estratégias feministas na tradução. Entre as traduções publicadas destacam-se A beleza do marido, de Anne Carson, com Julia Raiz, para a Bazar do Tempo; A leitora incomum, ensaios de Virginia Woolf, editora Arte e Letra, 2017. Bashback: ultraviolência queer, ensaios do coletivo Bashback!, 2020, tradução coletiva como Pontes Outras, com Julia Raiz e beatriz rgb. Mundo Barbie, livro de poesia de Denise Duhamel, editora Jabuticaba, 2021, tradução coletiva com Julia Raiz e Miriam Adelman. Ladras da linguagem: poetas mulheres e a criação revisionista de mitos, ensaio de Alicia Ostriker, 2022, série Cadernos de Leitura, editora Chão da Feira.

Resenha publicada originalmente na revista Pernambuco, nº2, Fev 2024.

 

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