Direito para Todos

Cármen Lúcia

OUTROS MESMOS DIREITOS:
A DIGNIDADE COMO CONQUISTA

A gente sonha um amanhecer radioso e um entardecer luminoso. Gente quer acordar com esperança e dormir em paz. Mas entre o nascer e o pôr do sol, as pessoas guerreiam. Na imensidão desse mundo, as atrocidades parecem mais vastas que os afetos. No entanto, a humanidade constrói-se no encontro; desnatura-se no confronto.

Perplexo em sua existência, o ser humano nega-se. Ao invés de construir humanidades, perde-se em desumanidades. Desertar-se de sua natureza é escolha. Os animais não fazem escolhas contra sua condição: a onça não “desonça”, o lobo não “desloba”, a serpente não “desserpenta”. O ser humano desumaniza-se!

E a história humana relata enlaces e desencontros. A pessoa descobre-se no outro. Mas, não raro, descuida-se do que segue a seu lado. E, assim, descura-se de si.

Os direitos são postos para que o caminho humano não se desacerte nos passos. São eles que marcam o andar e contam da travessia cumprida e do rumo que se dá a romper para a busca em direção ao destino utópico. Andar deixa o vestígio de humanidade construída a cada pegada, seguida e adiantada pelo que dá sequência ao rumo estradeiro. A senda persegue as pegadas desenrolando a rota.

Lei é sinal a impedir o descaminho. E ela não desabrocha a cada manhã, como se fossem rosas. Mas a força da vida incita o germinar permanente, que faz florescer a melhor humanidade a confortar a aventura humana. Desenham-se canteiros civilizatórios nos quais se cultivam ideais de justiça e paz.

É certo, há tantos desjardineiros com suas “flores de pânico” a destruir hortos que se faz necessária uma arquitetura humana de quintais, nos quais se esbocem jardins para semear alguma segurança no incerto da existência.

Direitos conquistados e declarados facilitam o florescimento de vidas, quantas vezes mutiladas pela insensatez da cega desumanidade. A erva que dana o plantio prescinde de labuta ou empenho. O mal cresce é na solidão do impreciso. O bem pede cuidado e atenção, a liberdade também.

O direito não é mesmo bastante para assegurar a humanidade, mas é imprescindível para constranger e reparar a injustiça desumana. Se mais não fosse, para saber o injustiçado que a injúria não há de ser aceita e contra ela há que se atuar. Declarações de direitos são documentos com força definidora de conteúdos imprescindíveis para o reconhecimento e o respeito à dignidade humana e para a garantia da igual liberdade de todos os seres. Declarações têm força impositiva. E há juízes e tribunais responsáveis por fazê-las valer.

O ser humano é frágil; a vida é insegura. A união fortalece. A solidariedade aconchega. Temendo seu próprio medo (da vida, da morte, do amor, do ódio) a tornar assustadiça a vida, as pessoas modelam espaços de convivência para que a grande aventura de viver seja expansiva e lance cada um para além da incerteza insuperável.

Assim se conceberam as democracias. Modelos de convivência acolhedora, com os direitos afirmados para a garantia da igualdade que irmana e faz do outro irmão, afinado pela mesma essência vital. É na dignificação do encontro e da união de todos que se constrói a forma livre de bem ser. Igualmente livres todos para desenvolver seu talento e sua vocação, não se divorcia a pessoa de sua humanidade.

Não que seja conjugação fácil a dos verbos humanos. Tão plurais, tão diversos! Toda pessoa é igual à outra em sua dignidade humana. Cada pessoa é única em sua identidade pessoal. Igualdade e singularidade dão a marca de humanidade que une todas as pessoas naturais. Mas a identidade de cada um, a distinguir cada ser humano de todos os outros, tornando-o único em sua existência, é o que tem desunido.

O que alargaria a humanidade de cada um ao ampliar-se no vislumbre do outro diferente impõe-se como entrevero do desconhecido e da resistência ao olhar. Para que a identidade única de cada pessoa seja um alento ao outro, para que a igualdade seja qualidade inquestionável nas relações humanas, cada um haveria de renunciar à vaidade para formar uma coletividade e, assim, promover-se a confiança de todos.

Tarefa árdua a se cumprir nos desvios do humano/desumano. Sem satisfazer-se em ser um, a pessoa nega-se a ser dois. Dilema complexo que não parece ser de uma geração, senão que de muitas.

Não se há de deixar de anotar que, de primeiro, as declarações de direitos do homem cogitavam mesmo do masculino. A marcha da humanidade avistou o feminino. A mulher forçou a porta. Toda mulher é um tanto Olímpia. A humanidade cedeu à interpretação mais ampla das declarações e acolheu, pouco a pouco, a mulher nos vãos dos direitos. Até agora nem tanto igual como declarado, nem sempre com gosto, como esperado.

Reconheceram-se os direitos fundamentais estendendo-os à mulher mais na forma que no conteúdo. Reconheça-se que abraços são movimentos lerdos. Espaçam-se no tempo, avançam lentamente. No vagar, a injustiça faz-se. A vida reclama urgência. A injustiça impõe pressa a desfazê-la.

Os povos avançaram nos encontros, as declarações de direitos mundializaram-se. Mas as guerras não deixaram de multiplicar-se. A paz tem alicerce frágil, a justiça compõe-se com cautela e método. A injustiça é feroz e rápida. E a guerra é sempre estrepitosa.

Chega-se ao século XXI tendo-se de encarar a “criança muda telepática e (a) menina cega inexata...”. Justiça – como a vida – é sempre um fazer inexato; a paz é um conviver impreciso. O viver humano é aritmética controversa, sempre surpreendente.

A cada direito conquistado e declarado há um novo garantir direitos a ser promovido. E a arquitetura humana é mutante e criativa. Reinventa-se a esperança. Para isso, há cândidas criaturas a mostrarem a alma de mulheres e homens e a ensinarem humanidade. Sábios os pincéis que desenham os caminhos vertidos e pintam estradas a palmilhar.

O caminho humano é longo e pleno de percalços. Mas os pés são para o caminhar. Afinal, gente quando não anda, desanda. E não é destino humano a desandança. Somos seres em marcha permanente. Declarações de direitos são candeias a iluminar a rota. O rumo é refeito a cada etapa. Mas sempre é tempo de humanidade. Em qualquer tempo, valem as declarações, testemunhas das épocas, lanternas para o melhor conviver humano. São elas documentos serventes à melhor condição de todos os seres. Por isso, as declarações de direitos persistem necessárias e eficazes.

À Declaração dos Direitos Humanos de 1948 seguiram-se muitas outras. Assim, por exemplo e dentre outros tantos documentos internacionais, a Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Políticos à Mulher (Decreto nº 29.584, de 28 de maio de 1951); a Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher (Decreto nº 31.643, de 23 de outubro de 1952); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969); a Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992); a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica - Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992); a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001); a Convenção sobre o Acesso Internacional à Justiça, firmada pela República Federativa do Brasil, em Haia, em 25 de outubro de 1980 (Decreto nº 8.343, de 13 de novembro de 2014); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002); a Convenção nº 29 da OIT – Trabalho forçado ou obrigatório aprovada pelo Decreto Legislativo nº 24, de 29 de maio de 1956 (Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019); a Convenção 105 da OIT – Abolição do trabalho forçado aprovada pelo Decreto Legislativo nº 20, de 30 de abril de 1965 (Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019); a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022).

Declarações são documentos nos quais se enunciam direitos em anúncio necessário às lanternas humanas postas para iluminar o caminho da Justiça. Cada povo em todo o tempo escolhe viver sob a luz da humanidade ou nos sombrios das catacumbas desconstruídas no perdido das injustiças.

Mas já se sabe que a melhor manhã é a que se desperta ao som do coração sossegado, não a que se abre ao estampido alucinado de explosivos. Afinal, todo ser humano tem o direito de acreditar que a sua vocação é contar a sua vida como um tempinho de alegrias. O outro terá, então, confiança de que também poderá vir a sorrir.

Na noite, as bombas continuam a explodir lá fora. Ressoam em meus ouvidos exaustos. Mas não conseguem fazer explodir a esperança de uma humanidade que faça cessar o fogo dos ódios, mantendo apenas a quentura do afeto mais sincero e humano.

Cândida e sinceramente, continuo a acreditar!


Cármen Lúcia Antunes Rocha é natural de Montes Claros (MG), magistrada, professora e jurista. Formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), é professora titular de Direito Constitucional naquela instituição. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi Procuradora do Estado de Minas Gerais, tendo sido Procuradora-Geral daquele Estado entre 2001 e 2002. É ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2006, quando se tornou a segunda mulher indicada para o cargo na história do país. Foi presidente da Casa entre 2016 e 2018. Em 2009 foi eleita para ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do qual foi presidente em 2012, tendo sido a primeira mulher a ocupar a posição. Desde 2023 exerce outra vez o cargo de vice-presidente daquele Tribunal Superior. É autora de vários livros jurídicos e artigos publicados em revistas especializadas.

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